Entre Eisners, assédios e demissões

Entre Eisners, assédios e demissões

Ao contrário do que aconteceu no começo do ano no Festival de Angoulême, um dos mais importantes para os quadrinhos, no qual nenhuma mulher foi indicada ao Grand Prix (prêmio dado ao conjunto da obra de um autor), o Eisner bateu o recorde de nomeações de mulheres a diversos prêmios em 2016. Foram 49 mulheres, com 61 indicações em 27 das 30 categorias contempladas pelo prêmio, com certeza um evento a ser comemorado pelas profissionais e fãs dos quadrinhos.

Mas na mesma semana, soubemos do desligamento da editora senior Shelly Bond do selo Vertigo, do qual ela fazia parte desde sua origem em 1993 quando ainda era assistente de Karen Berger, a responsável pelo sucesso do selo. De acordo com o site CBR, a DC teria eliminado o cargo de Bond e agora as equipes criativas do selo se reportariam diretamente ao Dan Didio e Jim Lee, editores executivos da linha mainstream da DC.

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Imagem/Crédito

Shelly assumiu o posto de editora chefe depois da saída de Karen Berger em 2012 e teve uma vida bem difícil como chefe da editoria.

A Vertigo era um espaço destinado a quadrinhos adultos e sempre foi sinônimo de qualidade até uns anos atrás quando passou por uma reestruturação e perdeu alguns de seus personagens chave como Constantine e O Monstro do Pântano para a editoria regular da DC Comics, que também passou por uma série de reformulações para tentar ganhar mais público. Só a saída de Bond já seria um golpe para os fãs da DC e da Vertigo,  mas a reação de vários profissionais dos quadrinhos no Twitter veio para completar a desgraça, trazendo à tona os casos de assédio sexual nos bastidores das maiores editoras de quadrinhos americanas.

O site Bleeding Cool divulgou alguns tweets da editora Janelle Asselin nos quais ela conta sobre o assédio que sofreu de Eddie Berganza, editor senior de Superman, e como isso impactou sua carreira a ponto de sofrer de depressão e estresse pós traumático. Assim como Asselin, outros artistas e profissionais que já passaram pela DC demonstraram sua revolta com a demissão de Shelly Bond e a permanência de Berganza na editora.

Eddie Berganza possui várias acusações de assédio por parte de mulheres que trabalharam com ele a ponto da DC Comics isolá-lo em uma editoria composta apenas por homens.

denuncia 1
“Recentemente eu recusei um trabalho em Supergirl porque eu fiquei nervosa em ter de trabalhar com Eddie Berganza.”
Denuncia 2
“Eu escolhi não trabalhar com alguém que tinha uma má reputação com mulheres e por isso fui demitida de outro trabalha para o qual estava escalada.”

De acordo com o próprio Bleeding Cool, que denunciou os assédios ainda em 2012, o editor sênior está tão confortável em sua posição, que cometeu um abuso em plena “Wonder Con” na frente de muitas testemunhas ao apalpar os seios de uma mulher. O tema de assédio sexual nas editoras de quadrinho só veio atingir o grande público um tempo depois, sem que nada fosse feito a seu respeito. Só no fim do ano passado, com a denúncia da Alex De Campi que a merda parece ter acertado o ventilador de vez. De Campi é autora da HQ digital Valentine, mas que já escreveu para títulos como Mulher-Maravilha (DC), Scorpions (Marvel) e Grindhouse (Dark Horse), ou seja, ela é uma autora prolífica e de muito talento, mas com uma boca “grande demais” para o gosto do mercado.


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Acontece que assédios desse tipo existem desde os primórdios dos quadrinhos, e ninguém nunca se preocupou em fazer nada para amparar essas mulheres muito assustadas para falar no assunto. Ninguém pode culpá-las por querer guardar segredo sobre isso, já que todas as formas de coação são usadas, desde os famosos panos quentes das pessoas dizendo que elas exageraram na reação, até ameaças às suas carreiras.  Eddie Berganza não foi o primeiro e não será o último.

Julie Schwartz  (o tio Schwartz) ainda é conhecido como uma lenda da era de prata da DC, mesmo após repetidas acusações de abuso sexual, inclusive de uma menor de idade. Ele continuou colhendo os louros na DC  mesmo depois das denúncias e foi embaixador da boa vontade pela empresa até se aposentar.

Scott Allie, editor da Dark Horse, por décadas ficou conhecido pelo seu péssimo comportamento depois de tomar umas e outras e chegou ao cúmulo de apertar os testículos do escritor Joe Harris em público durante um evento. Nathan Edmondson, roteirista de um dos títulos da Marvel, também entrou na lista de caras a serem evitados por mulheres trabalhando com quadrinhos, por ter um comportamento indecente acerca de suas colegas de trabalho, fora os outros que não foram formalmente nomeados ainda. 
Mas o que tem sido feito pelas editoras para que esse tipo de problema acabe? Aparentemente nada.

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“Seu assédio constante ao sexo feminino me enoja.”

Quando uma mulher presta queixa de assédio ao RH das editoras, na maioria das vezes elas são convencidas a se calar e mesmo quando colocam a boca no mundo são punidas com a perda de contratos de trabalho, punição que respinga em qualquer um que tente ajudar, enquanto seus abusadores continuam gozando de posições privilegiadas e sendo promovidos, muitas vezes conseguindo limpar a ficha de denúncias, enquanto as “Shelly Bond” são demitidas, apesar de seu bom trabalho.

Por isso é importante que fãs de quadrinhos não se calem diante desse tipo de denúncia, boicotes aos títulos encabeçados por assediadores e cobranças de um posicionamento da empresa devem ser feitos. Precisamos encontrar soluções para esse problema e parte disso pode ser o apoio a autoras com seus trabalhos independentes para que elas possam se livrar do controle das editoras e sobreviver com sua arte, pois de nada adianta cobrarmos representatividade de personagens femininas nas HQs, enquanto mulheres de verdade estão sofrendo nos bastidores da indústria que precisa entender o quanto tem a perder ao afastar talentos femininos da linha de frente de suas produções, como bem a lista de indicadas do Prêmio Eisner veio provar.

Quadrinho “It Ain’t Me Babe”, de Trina Robbins

Escrito por:

46 Textos

Formada em Comunicação Social, mãe de um rebelde de cabelos cor de fogo e cinco gatos. Apaixonou-se por arte sequencial ainda na infância quando colocou as mãos em uma revista do Batman nos anos 90. Gosta de filmes, mas prefere os seriados. Caso encontrasse uma máquina do tempo, voltaria ao passado e ganharia a vida escrevendo histórias de terror para revistas Pulp. Holden Caulfield é o melhor dos seus amigos imaginários.
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