Quão justo é o espelho que a mulher tem na cultura?

Quão justo é o espelho que a mulher tem na cultura?

“Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida.” (Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem)

É interessante como a gente só começa a pensar nas coisas quando se assusta em frente ao espelho. O espelho que não é só aquele anteparo que nos reflete: o espelho é tudo que nos rodeia e que denota nossa presença no mundo.

Não somos seres estranhos no meio de outros seres estranhos. Somos seres parecidos, semelhantes, não só pela nossa aparência física, como também por termos, todos, as mesmas fases durante a vida. Somos semelhantes em cada fase de nossa vida. Na infância, é comum que brinquemos, na juventude, que tenhamos potência e força, e que comecemos a nos curvar e doer quando acumulamos muito e muitos anos.

Mas não só isso. A nossa cultura também é um dos nossos espelhos. E, no mundo ocidental, principalmente, em que a cultura visual é muito valorizada, a imagem é vendida como espelho para servir, em enorme parte, ao consumismo.

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Desde o século passado, o cinema funcionou como um grande propagador de mensagens. Por trás de suas imagens, as pessoas eram apresentadas a realidades ditas ficcionais, mas que, ao fundo, carregavam ideologias as mais diversas. Há várias teorias dentro da Teoria da Comunicação que dissertam sobre isso, sobre a chamada “Indústria cultural”. O fato é que o cinema ditava costumes, moda, comportamento, passando até pela religião e pela política. O cinema hollywoodiano, principalmente, desde muito cedo soube que poderia se tornar mais importante se tomasse posse, como um “espelho”, da vida das pessoas, dos seus espectadores. Ora, o cinema também somos nós, ele é feito de pessoas. Mas não quaisquer pessoas. O cinema sempre se fez a custo de muito dinheiro. Dinheiro este que também não estava isolado do mundo. O cinema vendia moda, vendia beleza, juventude, vendia um estilo de vida determinado por quem detinha o poder econômico. E quem detinha o poder econômico também ditava o que mundo iria consumir.

Então, sim, o cinema vende há muito tempo o tipo de gente que devemos ser. Apesar dos variados esforços marginais, dos variados cinemas feitos no mundo, o cinema ainda é uma máquina de propaganda de massa. De massa, para que a massa consuma o que ela precisa comprar, para, ao fim, sustentar essa mesma máquina.  Então, há mais de um século, milhões de mulheres tentam ter a pele das estrelas, o marido das estrelas, a bela casa delas e é, claro, o belo corpo delas e – A JUVENTUDE que elas têm/aparentam. Sim, porque, com raríssimas exceções, o cinema é a celebração da juventude, não só, mas principalmente, da juventude FEMININA. E por quê? Rapidamente, poderíamos responder que é porque a mulher consome mais enquanto jovem e ativa. Mas se descermos um degrauzinho abaixo dessa pretensa afirmação, vamos descobrir que é porque A MULHER É TIDA COMO UM OBJETO DE CONSUMO. E de novo, não qualquer mulher: a mulher que pode ser consumida é a que pode ser sexualizada. E SÓ é permitida a sexualização da mulher que o cinema mesmo apresenta, aquela que é magra, branca E JOVEM.

Essa foto é o perfeito homem de meia idade em crise pega mulher jovemOs exemplos são vários. Somente à guisa de ter um caso que possa representar as duas pontas que pretendo comparar, vou falar de “Uma linda mulher”, um estrondoso sucesso de público e que lançou definitivamente a atriz Julia Roberts. Ela, no auge da juventude e beleza. O par romântico dela era Richard Gere, um homem bonito, sim, mas que claramente tinha no mínimo, 20 anos a mais. Julia se manteve em papéis em que sua beleza e jovialidade eram “vendidas” tanto ou mais que a ficção o quanto ela pôde (ou seja, enquanto o “público” a considerava um bom produto de consumo). Hoje ela está perto de completar 50 anos. E é incontestável que, mesmo com a idade, permanece linda, mas mais do que isso: permanece capaz de exercer seu trabalho. Porém, seus papéis diminuíram imensamente, e suas aparições públicas também. O mesmo podemos dizer de várias atrizes contemporâneas dela: Kim Basinger, Catherine Zeta-Jones, Renée Zellweger.

E os homens? Ah, os homens não somem assim. Os espelhos masculinos tem longevidade maior. Quando da estreia do mais recente filme da saga Star Wars, não houve comentário sobre como Harrison Ford e Mark Hamill estão tão velhos, mas CHOVERAM  comentários sobre como Carrie Fisher estava “muito mudada” – expressão que comumente é a fantasia cafona que reveste a verdadeira: ela está velha, ou pior, ela não é mais jovem.

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Olivia Wilde revelou ter sido considerada “velha demais” para o principal papel feminino do filme O Lobo de Wall Street

Na cerimônia do Oscar de 2015, Patrícia Arquette fez um discurso emocionado sobre como a mulher tem sido remunerada de forma completamente defasada em relação aos homens em Hollywood. Foi aplaudida enfaticamente por Meryl Streep, que resiste, espantosamente, mas cada vez mais solitária entre as mulheres de sua idade com papéis no cinema americano. Dezenas de atrizes expressaram depoimentos comuns e mesma vontade de mudança.  Ainda assim, os filmes de grandes bilheterias continuam fingindo que essas mesmas mulheres não existem (ou só servem como avós dos personagens), tais quais suas reivindicações.

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Calendário de 2016 da Pirelli, Amy Schumer, por Annie Leibovitz

Esperamos que um pontapé tenha sido dado. Espera-se que o surgimento de mulheres com estereótipos um pouco diversos no cinema e na TV também signifique mudanças. É o caso por exemplo, da comediante Amy Schumer, que com o seu “Inside Amy Schumer”, tenta desconstruir essa imagem estereotipada de mulher, dessa espécie de Barbie, que como a boneca, é um conceito impossível, insustentável e indigno de ser posto como exemplo para as mulheres em geral. Tocando justamente no ponto desse artigo, ela fez o brilhante episódio intitulado “Last F**kable Day – Uncensored” em que as atrizes Tina Fey, Patrícia Arquette e Julia Louis-Dreyfus – todas de meia idade, comentam sobre o que ser atriz e mulher no cinema atual. Vale a risada e a reflexão.


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Mulher, feminista, formada em Comunicação, pós em Design e Marketing e sonhando com um Mestrado em Cinema. Pinta, borda, lê e pergunta muito, porque resposta acaba, mas pergunta renasce todo dia. Aprendendo a ser mãe. Gosto de gato, de sol e de vinho frisante.
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