Helena de Troia: como a beleza definiu uma mulher e conduziu uma guerra

Helena de Troia: como a beleza definiu uma mulher e conduziu uma guerra

Inicialmente, destaco que o livro Helena de Troia – Memórias da Mulher Mais Desejada do Mundo, de Francesca Petrizzo, encontra uma leve atenuação em seu título da versão brasileira. Isto, porque o título original consiste em “Memoire di uma cagna”, o que sugere algo bem diferente – e muito mais profundo neste enredo.

Quem não costuma ler o título original ou não compreende o que significa a palavra “cagna”, talvez deixe passar um detalhe muito importante. “Cagna” significa cadela. Assim, na chamada de sua história, Francesca Petrizzo compara a figura mitológica de Helena de Troia, a mulher mais bela da mitologia grega, a uma mulher baixa. Estaria a autora, então, julgando os passos de sua personagem ou apenas revelando a visão pela qual os demais personagens viam esta bela mulher?

Contém Spoilers

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Resolvida a questão do título, passo para a história. Francesca Petrizzo narra em seu livro a história da famosa Helena, aquela que, por sua inconsequência levou à queda uma cidade inteira. Em minha primeira leitura da história, há muitos anos e ainda dominada por uma ingenuidade (que hoje vejo ser dominada pela ignorância de minha juventude), achei que a visão da Helena de Petrizzo foi deprimente.

Esperava, à época, a construção de uma heroína, de uma personagem forte que lutasse pelo amor. Esperava que o livro narrasse uma história romântica. Queria que focasse no relacionamento de Helena com Paris e que me transmitisse outra sensação que não a de que Paris e Helena fossem duas pessoas inconsequentes e caprichosas. Pior, desejava que Paris ofuscasse a protagonista e que vencesse a infantilidade que lhe fora atribuída em tantas outras versões.

Os anseios que descrevi acima desapareceram conforme amadureci e compreendi que a versão romântica de uma história nem sempre é possível e que, mais do que isso, é preciso contar os fatos não românticos para que vejamos a realidade e dar poder às protagonistas mulheres. Assim, percebo hoje que Francesca Petrizzo contou uma versão da história da qual todos deveriam ter conhecimento para uma outra reflexão deste mito.

A autora não se deixou vencer pela ideia de colocar o destaque no par romântico da protagonista. Desse modo, o papel de Páris – um personagem que enoja por sua arrogância e imaturidade -, na história, foi o de conduzir Helena à sua derrocada: a queda de Troia. E engana-se quem pensa que, ainda assim, o livro narra somente este romance épico.

Petrizzo conta a vida de Helena, de sua infância à tragédia por ela causada – ou cujo estopim Helena motivou. Petrizzo conta como a mulher mais bela do mundo foi enxergada apenas como um objeto pelos homens de sua época, que a adoravam em sentidos carnais, que a usavam, a destruíam e ainda lhe atribuíam a queda de um povo. Petrizzo disseca como os olhares sobre Helena marcaram seus infortúnios e seu destino.

Helena tinha tudo e nada ao mesmo tempo. Era a mulher mais bela do mundo, mas vivia de fantasmas. Vivia das memórias de amores que lhe foram prometidos e de sonhos que lhe foram roubados. Bela de nascença, cresceu achando que sua beleza lhe traria a felicidade. Sempre sonhara com o amor, mas nunca lhe fora permitido vivê-lo – exceto, talvez, durante alguns anos de guerra, quando já era tarde demais. Sempre que pensou vivê-lo ou agir por ele, descobriu-se enganada. Não foi amada do modo que desejava por seus pais, ou por seus irmãos, ou por sua filha, ou mesmo por grande parte de seus amantes – escravos da luxúria masculina.

Processed with VSCO with a6 presetHelena descobriu que a beleza de uma mulher pode ser uma arma contra ela mesma num mundo de tantos abusos. Herdou de sua grande virtude a constante decepção. Tentava a todo modo afastar-se daquele medo de sua infância de tornar-se igual à sua mãe, Leda. Todavia amargurou-se, tornou-se fria e solitária tal qual sua genitora. Tornou-se indiferente ao mundo que sempre lhe fora indiferente.

Como reação às suas quedas, tornou-se ela própria escrava de seus desejos e caprichos. Tentou compensar o mundo que lhe fora roubado com um mundo que pensava roubar. E nem mesmo em Troia encontrou a paz que pedia, destruindo o mais próximo que teve de carinho e afeição junto a Calira, Heitor, Eneias e Cassandra.

Em minha primeira análise, senti pena de Helena. Tive pena, porque Helena nunca se deixou amar por completo. Ficou presa a sonhos, fantasmas e pessoas que só a decepcionavam, porque não queriam nada além de seu corpo. Ficou presa a seus medos. Foi raptada, ainda pequena, por um homem repugnante. Amou um homem sem nem sequer ver-lhe a face. Entregou-se a um homem que não lutou por ela. Casou-se com um covarde. Escusou-se a fugir com pai de sua filha. Aceitou fugir com outro covarde, largando sua filha e sendo a desculpa de uma guerra que duraria 10 anos.

Contudo, percebo que a pena que senti por Helena transformou-se em força ao ver que tantas mulheres seguem os mesmos passos da personagem, porque o mundo lhes promete uma vida utópica em troca da melhor aparência. E o que encontramos é o vazio de uma sociedade que presa a visão objetificada de tantas outras Helenas de Troia e tantas outras mulheres que tentam ser como ela.

Por fim, dou um breve destaque a outra personagem feminina, Cassandra, uma personagem que adoro desde que li “Incêndio de Troia”, da Marion Zimmer Bradley – livro que recomendo imensamente – e que exerceu um papel fundamental na história. Também destaco que o final, embora o enredo geral seja de conhecimento público, surpreende bastante. Somos conduzidos a crer que o final de Helena será uma superação de seus fantasmas.

De certo modo, é, sim. Porém, não é o típico final feliz de um conto de fadas, porque esta nunca foi a proposta da autora. Ao ler as últimas linhas do epílogo, não pude deixar de pensar que Helena finalmente fez a coisa certa por sua vida, tomando uma coragem que nunca teve antes e alcançando o que acredito ter sido o desfecho mais coerente para sua história.

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Concluo dizendo que é um livro bom, embora não maravilhoso. Não o recomendo a quem desejar um épico romance, uma história clássica que faça suspirar. A Helena de Francesca desconstrói muito do que se pensa de Helena Troia e é tudo, menos a musa de tantas adaptações. “Helena de Troia – Memórias da Mulher Mais Desejada do Mundo” é a obra perfeita para quem gosta de compreender as implicações dos mitos e desconstruir famosos e inspiradores personagens.


Helena de Troia

Francesca Petrizzo

216 páginas

Editora LeYa

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Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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