Mãe Só Há Uma: Anna Muylaert e seu cinema não-binário

Mãe Só Há Uma: Anna Muylaert e seu cinema não-binário

Mãe Só Há Uma” (2016), novo filme da cineasta brasileira Anna Muylaert, vai muito além dos tradicionais filmes que pretendem encenar uma trama “baseada em fatos reais”. A diretora apenas se inspira no “Caso Pedrinho” para amalgamar seu enredo – para quem não se lembra, em 2002, o Brasil se comoveu com o caso de um menino (Pedrinho/Osvaldo Junior) que havia sido roubado na maternidade e cuja farsa foi descoberta após 16 anos, quando se deu o reencontro com sua família biológica. Mas nem de perto, o objetivo desse filme é reencenar aqueles acontecimentos ou retratá-los de forma fidedigna.

Partindo de um evento traumático em que todo o alicerce familiar do personagem principal, encarnado pelo excelente ator Naomi Nero, desaba já nos primeiros minutos de projeção, Anna pretende contar uma história muito maior: “Mãe Só Há Uma” é um filme sobre identidade, sobre gênero, sobre reconstrução de vida, sobre desconstrução de si mesmo, sobre reencontrar-se no mundo.

O texto não contém spoiler

Mãe só há uma

Com uma câmera transpirante, que nos permite acompanhar a rotina dos personagens, principalmente na parte introdutória da trama, em super closes, podemos não apenas ver suas angústias, mas de certa forma experimentá-las. O filme é praticamente uma experiência sensorial, na medida em que Muylaert nos transporta para dentro da tela, como se quase pudéssemos tocar a pele dos atores, sentir seus cheiros e fazer parte daquela realidade que aos poucos nos vai sendo apresentada de forma claustrofóbica.

Pierre que vira Felipe que vira Pierre e volta a ser Felipe descobre que Aracy (Dani Nefussi) não é sua mãe biológica e se vê obrigado a ir viver com sua “nova” família. Deixando sua casa de origem humilde, na periferia, após a prisão de Aracy, para ir viver em um condomínio de luxo ao lado de Glória (também interpretada por Dani Nefussi), Pierre/Felipe (Naomi Nero) não abandona seu passado.

Além de toda essa nova realidade familiar que o personagem vai precisar digerir, também há a dificuldade de se encaixar em um perfil sociocultural com o qual não foi sociabilizado e é nessa chegada a nova casa e no encontro com os demais membros da família biológica, o pai conservador Matheus (Matheus Nachtergaele) e o irmão mais novo Joca (Daniel Botelho), que todos os conflitos internos que Pierre/Felipe já esboçava no começo do filme, ganham força e tridimensionalidade.

Mãe só há uma

Embora sejam construções diferentes de personagens, o adolescente Pierre/Felipe tem a mesma força narrativa de Jéssica de “Que horas ela volta?” (2015), trabalho anterior da diretora, que inclusive foi o filme indicado pelo Brasil para concorrer a uma das vagas na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar deste ano. Em ambos os roteiros, o elemento de fora, o olhar estrangeiro, penetra no ambiente doméstico a fim de desestabilizar o status quo vigente e nos convidar a fazer uma reflexão sobre a realidade maior que alicerça a nossa própria sociedade. É importante destacar que nos filmes de Anna Muylaert a casa enquanto lar, na sua estrutura arquitetônica estruturante de pensamento, é um importante símbolo significante e produtor de significado.

Anna Muylaert nos fazer experimentar com Pierre/Felipe o que é se perder, se achar, se reconstruir e se reinventar. O filme é uma ode à liberdade do “podermos ser o que quisermos” em tempos em que o ódio à diferença e à alteridade se manifesta de forma amedrontadora e acachapante. Apesar do filme ter sido concebido muito antes do momento político pelo qual o Brasil está passando, é possível inclusive fazer uma analogia com a nossa adolescente democracia que está sendo roubada, assim como Pierre/Felipe também o foi. É impossível negar que a diretora não tenha uma veia política muito forte e pulsante em seus filmes, mesmo naqueles em que aparentemente se apresentam como um simples melodrama ou uma história de costumes.

Anna Muylaert

Mãe Só Há Uma” aborda de forma bastante delicada, mas nem por isso menos pungente, a questão da identidade de gênero, rendendo na pele do personagem interpretado por Naomi Nero, duas das melhores cenas do ano no cinema brasileiro: a cena do provador de roupas (na qual o patriarca pretende incorporar ao filho recém chegado os velhos hábitos de vestimenta que ele considera adequados ao convívio social) e a cena do boliche, onde ocorre uma grande catarse familiar.

A forma como a diretora amarra a temática do não binarismo de gêneros remete a dois outros filmes igualmente relevantes para se pensar essas questões, como “El ultimo verano de la Boyita”, dirigido pela argentina Julia Solomonoff (ainda inédito no Brasil) e “Tomboy” (2012) da francesa Céline Sciamma e disponível na Netflix.

Em ambos, assim como em “Mãe Só Há Uma“, as personagens não se enquadram nos perfis e identidades de gênero que lhe são impostos biológica e/ou socialmente e lutam para se apresentarem da maneira que se sentem mais confortáveis negando essa lógica binária de construção identitária, que é tão opressora nas sociedades patriarcais. Afinal, como aponta a filósofa feminista Judith Butler, gênero não é um problema do campo da sexualidade, mas sim é um problema político.

Portanto, é nesse sentido que Muylaert constrói a sua narrativa, numa tentativa de desmontagem daquilo que chamamos de “ser mulher” e/ou “ser homem”, quebrando radicalmente com qualquer noção pré concebida pela dominação masculina acerca do próprio conceito de gênero tal qual o conhecemos como uma categoria útil de pensamento.

Naomi Nero

Mas o filme e as agruras pelo qual Pierre/Felipe passa não seriam as mesmas se um personagem secundário que cresce assombrosamente na trama não estivesse ao largo de sua experiência. Joca, o irmão caçula, é uma grata surpresa não apenas em termos de atuação, mas também no sentido de conferir maior densidade na construção do arco narrativo do personagem principal.

A cena final é realmente um deleite para os olhos e para o coração. O fato da diretora abandonar os personagens a própria sorte, não fechando suas tramas, a medida em que eles vão literalmente desaparecendo de cena, é um dos muitos pontos altos do filme que, de forma extremamente eficiente e brilhante, nos seus 82 minutos de projeção, nos fazem perceber que realmente mãe só há uma e, quando apreendemos o porquê da diretora ter optado por utilizar a mesma atriz para representar as duas mães, tudo faz mais sentido.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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