Battle Royale: uma crítica extrema ao sistema de educação

Battle Royale: uma crítica extrema ao sistema de educação

Mesmo cumprindo um papel essencial para a construção da nossa sociedade, os professores ainda sofrem com o descaso das autoridades, salas cheias de alunos desmotivados, falta de segurança e condições de trabalho que muitas vezes levam a problemas físicos e emocionais. Quanto aos alunos, muitos têm experiências edificantes durante o período na escola, mas crescem os relatos de estudantes que vivenciaram um verdadeiro inferno na escola e passaram por situações danosas que vão do bullying praticado pelos colegas ao descaso dos professores e corpo diretor.

A educação formal por muito tempo era algo destinado aos membros de elites, e foi apenas no século XIX que medidas para acabar com o analfabetismo entre a população geral foram aplicadas nos países ocidentais, visando principalmente preparar uma mão de obra mais qualificada para exercer seu trabalho. Entretanto, discussões sobre a eficácia desse modelo – onde vários alunos bebem de uma única fonte, o professor – um conteúdo programado e universal vêm ganhando espaço na pedagogia desde a última metade do século passado. Mas o que tudo isso tem a ver com “Battle Royale“?

Battle Royale

O livro

O único romance do escritor japonês Koushun Takami foi desclassificado na fase final do Grand Prix Horror Novel, um concurso voltado para a literatura de terror por conta de seu conteúdo polêmico, lembrando muito o caso do livro “Fúria” (escrito por Stephen King sob o pseudônimo de Richard Bachmann) que possui uma temática similar e foi acusado de motivar alguns crimes cometidos por atiradores em escolas americanas.

– A finalidade desse jogo. Existe algum sentido nele?
Os olhos de Shogo se arregalaram, mas logo em seguida ele baixou o rosto e começou a rir sozinho. Ele se divertiu bastante com a pergunta. Então por fim, disse:
– Claro que não há finalidade nenhuma.

(Battle Royale – Pág. 239)

Nesse livro de 1999, o autor conta a história de 42 estudantes do nono ano do ensino fundamental que são selecionados para participar do Programa: uma atração elaborada pelo governo fascista ao qual o Japão foi submetido após uma guerra, e que fechou suas fronteiras para o resto do mundo. 

O Programa consiste em uma batalha até a morte entre os estudantes da mesma turma até que apenas um sobreviva no final. Para isso, cada estudante recebe um kit de sobrevivência com mapa, bússola, comida e, claro, uma arma. A natureza dessa arma varia de uma submetralhadoras até um garfo de cozinha. Após receber o kit de sobrevivência, o aluno é solto em uma ilha deserta onde vai enfrentar seus colegas.

Somos então apresentados a Shuya Nanahara, que era um atleta genial durante o ensino fundamental, mas trocou o taco de baseball pela guitarra elétrica quando se apaixonou pelo rock n’ roll, ritmo considerado subversivo pelo governo. Shuya passou a vida toda em um orfanato do governo onde teve uma infância feliz, na medida do possível, acompanhado de seu melhor amigo Yoshitoki Kuninobu, que também estuda na turma B do nono ano da escola Shiroiwa.

Shuya e Yoshitoki saem em excursão junto com o resto da turma, sem saber que a viagem era apenas um pretexto para levá-los à arena do Programa. Os estudantes são sedados e levados para uma sala de aula improvisada em uma ilha deserta, lá são apresentados à aberrante figura de Kinpatsu Sakamochi, que faz a vez de professor, e ficam sabendo que a turma deles foi a selecionada para participar do evento naquele ano. Como forma de fazer os alunos acreditarem no que ele diz, Sakamochi apresenta à turma o cadáver de seu professor verdadeiro, que foi assassinado por se opor ao Programa.

Ainda em choque, os alunos ficam sabendo que alguns de seus pais também foram punidos por reclamarem da seleção da turma, entre eles está a responsável pelo orfanato onde Shuuya e Yoshitoki cresceram, que foi estuprada por Sakamochi. Antes que Shuya pudesse reagir, o sempre pacato Yoshitoki ataca Sakamochi e é alvejado com um tiro na cabeça. Assim começa o jogo.

Mesmo vendo o amigo morto, Shuya se recusa a entrar no jogo como o governo quer e tem a esperança de poder contar com alguns amigos para escapar da ilha. O único problema é que eles são separados logo no início, tornando a tarefa bem mais difícil.

Durante todo o livro, conhecemos um pouco sobre os alunos da turma, suas habilidades, seus sonhos e sua visão sobre o jogo cruel ao qual foram expostos. Muitos agem pelo medo e desconfiança, mas alguns sentem prazer em matar os colegas de sala, tornando o clima na ilha extremamente hostil.

O Sistema não perdoava nem mesmo os inocentes. Por isso, todos continuavam intimidados pela sombra do governo, obedecendo totalmente às suas políticas e viviam tendo como consolo somente as pequenas felicidades da vida diária. E mesmo quando essas felicidades lhes eram indevidamente tomadas, apenas aguentavam de modo servil.

(Battle Royale – Pág. 214)

O livro dá margem para interpretar que a escolha da turma não foi tão aleatória quanto os representantes do governo dizem, muito dos alunos tinham comportamentos considerados subversivos e outros até eram considerados vencedores em potencial, tornando-se alvos de apostas pelos membros do governo. Além disso, nada garante mais o sucesso de um sistema ditatorial do que esmagar a oposição antes que ela possa florescer.

A
representação feminina no livro fica um pouco aquém do esperado. Entre os rapazes, temos vários com habilidades únicas que os ajudam a sobreviver, mas poucas meninas parecem capazes de fazer algo além de chorar. Mesmo assim, temos alguns bons exemplos como Takako Chigusa, a velocista da escola; as garotas do Farol, que se unem e formam um time para autoproteção em um farol abandonado; Noriko Nakagawa, que se une a Shuya e compartilha sua esperança de união; e a figura controversa de Mitsuko Soma.

Embora perpetue a ideia de que meninas que sofrem abuso crescem para se tornar frias e cruéis, Mistuko também quebra o estereótipo da estudante japonesa servil e quieta. Ela é uma das que mais se envolvem no jogo, matando a sangue frio companheiros e companheiras para chegar ao final.

“Battle Royale” fez um sucesso imenso no Japão, com mais de 1 milhão de cópias vendidas. O livro ganhou duas adaptações para o cinema, com o ator Takeshi Kitano no elenco: Battle Royale (2000) e Battle Royale II: Requiem (2003).

Com jeitão de filme B, a história do primeiro filme leva mais em conta a versão do mangá. Mas também vale a pena conferir, afinal, foi por causa dele que Quentin Tarantino encontrou o talento de Chiaki Kuriyama (Takako Chigusa) que veio a interpretar a colegial assassina Gogo em “Kill Bill”.

O mangá

Battle Royale foi adaptado para mangá em 2000, um ano após a publicação do livro. No mangá, que conta com 15 volumes, podemos ver a discussão sobre a competição estudantil de forma mais clara, como por exemplo na figura de Yoshio Akamatsu – um jovem que sofreu bullying de seus colegas de turma a vida toda, e que não acredita que alguém vá ficar do seu lado durante o jogo. Yoshio é o primeiro a matar por medo e desespero.

Battle Royale - Angel’s Border

Em 2014 foi lançado o mangá “Battle Royale – Angel’s Border”, escrito pelo próprio Takami. Na obra mostra com mais detalhes o subplot das garotas do Farol, que foi abordado de forma mais rápida e superficial no livro, pois precisava dar conta dos outros personagens.

Nesse mangá único, Takami aproveita para mostrar mais de seu Japão distópico através das histórias das meninas que tentaram sobreviver unidas. Ele aborda temas como homossexualidade, e a visão cruel do governo quanto a essa parcela da população, com a história de Haruka – que tenta esconder seus sentimentos pela melhor amiga (a representante de turma, Yukie, que reuniu o grupo no farol).

O mangá também vai abordar o primeiro amor na adolescência, com a história emocionante de Chisato Matsui e Shinji Mimura. O autor constrói muito bem os personagens e mostra Chisato como uma menina delicada e inteligente que almeja construir um futuro para si por conta própria. Embora a história do mangá seja um pouco diferente do livro, vale muito a pena a leitura.  O mangá foi lançado no Brasil pela editora NewPop.

O livro é muito pertinente como crítica ao atual modelo educacional, que estimula a competição cruel entre os estudantes e nunca a colaboração. Desde muito novos, os alunos são colocados em constante posição de disputa, seja por notas melhores, ou por popularidade. Para muitos, a escola é um constante concurso de beleza, ou um campo de batalha que exclui os mais desajustados, transformando pessoas em autômatos. A obra também fala da posição do professor como uma figura humilhada, que acaba odiando aqueles a quem deveria ensinar e guiar, simplesmente porque o sistema não fornece condições de que a educação seja prazerosa para ambos os lados, fazendo com que se odeiem mutuamente sem perceber quem é o verdadeiro inimigo. A gente não podia terminar esse texto sem citar “Jogos Vorazes”, né? 


Livro

Battle Royale

Koushun Takami

Editora Globo

664 páginas

Onde comprar: Amazon

 

Mangá

Battle Royale – Angels’s Border

Editora NewPOP

250 páginas

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

46 Textos

Formada em Comunicação Social, mãe de um rebelde de cabelos cor de fogo e cinco gatos. Apaixonou-se por arte sequencial ainda na infância quando colocou as mãos em uma revista do Batman nos anos 90. Gosta de filmes, mas prefere os seriados. Caso encontrasse uma máquina do tempo, voltaria ao passado e ganharia a vida escrevendo histórias de terror para revistas Pulp. Holden Caulfield é o melhor dos seus amigos imaginários.
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