[EVENTO] Debate: Por um cinema negro no feminino

[EVENTO] Debate: Por um cinema negro no feminino

Lis Kogan, diretora e curadora da 8ª Semana d_s Realizador_s explica que esta edição foi inspirada na Semana dos Realizadores do ano anterior, refletida pelo debate sobre mulheres realizadoras no audiovisual. Esse debate foi intensificado ao longo deste ano pela experiência de outras curadorias de Festivais com enfoque no cinema independente e experimental, como o CachoeiraDoc na Bahia, o Olhar de Cinema em Curitiba, o Janela Internacional do Recife, além do recorte de mulheres na direção.

 Para tal, Lis programou uma mesa de debate intitulada Por um cinema negro no feminino que foi realizada no dia 27 de novembro de 2016, durante a 8ª Semana d_s Realizador_s mediado pela pesquisadora doutora Janaína Oliveira, coordenadora do FICINE (Fórum Itinerante de Cinema), ao lado das realizadoras Yasmin Thayná e Adélia Sampaio, que exibiram respectivamente seus filmes Kbela (2015) e Amor Maldito (1984).

Ano passado, a realizadora Yasmin Thayná, que não pôde comparecer à Semana, enviou uma Carta-Manifesto sobre o fato de não haver realizadoras negras exibindo seus filmes naquela edição do Festival. Ressalte-se, neste sentido, que a realizadora não estava fazendo um pedido para que a curadoria dos festivais passassem a observar as fotos da equipe técnica dos filmes antes de analisar o filme em si, mas foi uma chamada para os curadores estarem mais atentos a propostas e abordagens diferenciadas, proporcionadas pela diversidade de realizadora/es de todo o país.

Este ano, em pleno 2016, uma das convidadas da mesa de debate, Adélia Sampaio, primeira mulher negra a realizar um longa-metragem de ficção no Brasil, “Amor Maldito” (1984), passou por um constrangimento de cunho racista, que impediu sua entrada numa aeronave comercial por ter sido barrada pelo detector de metais quando tentava retornar de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, cidade onde vive. Adélia possui próteses de metal nos joelhos e este fato foi informado aos operadores do aeroporto que ignoraram a informação e exigiram que a cineasta de 72 anos de idade retirasse toda a sua roupa (inclusive as roupas íntimas) e agachasse para comprovar que não ocultava nada em seu corpo. Trata-se de revista vexatória que não é mais utilizada nem mesmo em presídios no Brasil. Em resposta a este acontecimento terrível, a Semana d_s Realizador_s começou mais uma vez seu debate com o acolhimento à leitura de uma Carta/Moção de Repúdio* ao que aconteceu com Adélia Sampaio no dia 21 de novembro.

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Janaína Oliveira lê carta de repúdio ao racismo estrutural

As duas Cartas mencionadas foram o gancho para falar do processo de curadoria no cinema negro, com agradecimentos a Amaranta Cesar do CachoeiraDoc, que propôs primeiramente esse encontro, que culminou nesta parceria com a Semana d_s Realizador_s originando esta mesa de debate onde a pesquisadora Janaína Oliveira começou falando da importância de se reunir mulheres com experiência em curadoria e com um pensamento alinhado à dimensão do que é ser mulher e negra, a fim de fomentar consciência de público contra essa invisibilidade que paira sobre realizadoras negras.

Tudo isso, levou a uma conversa ainda mais ampla sobre estereótipos reproduzidos na tela. Mesmo quem nunca passou por qualquer tipo de experiência racista, pode ser sensível a estas questões e à participação das mulheres negras no audiovisual como um todo, uma vez cientes da invisibilidade e de como transformar esse quadro. Este diálogo visa buscar transformações da problemática racial em nossa sociedade e, neste recorte, segundo Janaína, as mulheres negras estariam ainda à margem da margem. Deve-se proporcionar a chance de outras pessoas se verem nas telas, com possibilidades que o cinema hegemônico de padrões eurocêntricos não permite, além de uma formação de público atento a estes deslocamentos de percepção.  

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Yasmin Thayná, Janaína Oliveira e Adelia Sampaio

Janaína passa então a palavra para Yasmin Thayná, realizadora do filme “Kbela” e da plataforma online de filmes realizados e protagonizados por negros, a Afroflix, que também agradece a vivência de mulheres realizadoras e curadorias proporcionadas recentemente por Amaranta Cesar e outras curadoras, e agora por Lis Kogan. Yasmin explica que seu trabalho realizado com “Kbela” tinha a intenção de falar de mulheres negras tendo sido feito por mulheres negras. Ressalta que apesar de toda a repercussão positiva do filme, esta já é sua 7ª produção, e talvez as obras anteriores não tenham ganhado tanta acessibilidade quanto a presente, devido aos poucos espaços dispostos a exibi-los.

Yasmin sempre fez seus trabalhos de forma independente, porém em “Kbela” contou com cerca de 60 pessoas no set de filmagem. O filme foi feito praticamente a custo zero, ainda que cinco mil reais tenham sido coletados pela internet para manutenção básica de alimentação, transporte e outras necessidades sem as quais as filmagens não teriam sido possíveis. Se não bastasse a pouca verba, a equipe ainda foi vítima de um assalto que culminou na perda do 1º material bruto. Yasmin diz que entendeu que às vezes processos como este demoram mesmo, o que acabou lhe proporcionando um maior diálogo com a obra, rendendo-lhe mais conexões e contatos que lhe fizeram refletir. Isto tudo aprofundou a consciência de Yasmin em relação ao trabalho que estava realizando, especialmente após saber sobre pesquisas que diziam que de 2002 a 2012 nenhuma mulher negra havia sido nem roteirista nem diretora dos filmes lançados comercialmente no circuito aberto no Brasil. Números que, contraditoriamente, não refletem a representatividade atestada pelo IBGE, que afirma que a maioria da população brasileira é de pessoas negras e, dentre elas, de mulheres negras.

Yasmin sente seu trabalho atravessado por investigações, cruzando, de certa forma, referências com o trabalho do vanguardista Zózimo Bulbul, pioneiro na identidade negra do audiovisual, referência com seu Alma no olho (1974), sobre performance corporal dentro do cinema como quebra da narrativa tradicional. O filme de Yasmin, porém, vai para além da expressão corporal, pois se passa numa instalação artística, com identidade cultural própria, de tal forma que Yasmin sempre pensou seus filmes como instalações que podem ser transpostas para fora das telas. Como exemplo, ela cita um de seus filmes onde acompanhou seu pai fazendo um quarto na casa da família: “Quais são as relações de afeto a partir de um quarto?” Neste filme, Yasmin filmou um pouco a cada ano por uma década, o que também foi um filme pensado de forma a poder virar uma instalação depois. Desta forma, Yasmin enfatiza que sempre pesquisa, ouve músicas e etc., para consubstanciar de que forma irá “imagetizar” as opressões que se costuma receber na sociedade e que seu trabalho pretende discorrer.

A palavra é passada para a cineasta Adelia Sampaio, primeira realizadora negra de um longa-metragem de ficção no Brasil, que reconhece que apesar de seu filme ser de 1984, a cada dia neste país o tema abordado se mostra mais atual, posto que violento. As motivações para sua filmografia, desde aquela época, já eram ligadas à humanística, e por isso em seu primeiro longa-metragem decidiu acompanhar o julgamento do caso verídico de uma mulher acusada de ter assassinado sua companheira, que na verdade havia se suicidado, apenas por serem homossexuais (apesar de os créditos finais dizerem que qualquer semelhança com a realidade era mera coincidência). Adélia chamou o amigo José Louzeiro pra realizar o roteiro junto com o argumento original que ela havia escrito sobre a violência, que envolvia aquela história no quadro histórico-social (a visão jurídica no Tribunal, na Religião, na esfera doméstica). Apesar de Adelia ter recebido 3 financiamentos pra produzir longas-metragens pela Embrafilme, após o sucesso de seus curtas (lançou curtas exibidos na época com filmes como “E.T.” de Steven Spielberg, “Nosferatu” de Werner Herzog, pois a lei do curta-metragem era embasada pelo percentual do filme estrangeiro que seria exibido junto com o curta), a Embrafilme reduziu o orçamento até chegar ao ponto de vetar por completo o filme alegando que jamais poderia produzir panfletagem à homossexualidade. Foi alegado que pessoas estariam “pregando esta doença” (referindo-se ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo).

Em um elenco hoje em sua maioria falecido, não falar sobre isso seria invisibilizá-los. Maria Leticia, por exemplo, que interpreta a irmã mais nova de uma das protagonistas é também cineasta, e seu trabalho nunca esteve recebendo janelas para poder ser divulgado. E como a Embrafilme havia decidido não mais financiar o projeto, Adelia teve a sorte de encontrar uma mecenas que acreditou no projeto. A Dra. Edi, doutora em uma hidrelétrica de Furnas, conseguiu o financiamento para tornar o filme em realidade, mesmo sendo feito com uma infraestrutura mínima, quase como uma cooperativa. Tanto que Monique Lafond, a atriz principal, aceitou colaborar justamente por causa do custo reduzido, uma vez que era sensível à causa e à história de fundo que deu mote ao filme. Adelia enfatiza que apesar do elenco predominante na época não ser negro, o diretor de fotografia, Paulão (Paulo César Mauro), era negro e tinha experiência em filmar o negro no cinema.

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cena de “Amor maldito”

Adelia admite uma sensação de tristeza de não ver essas pessoas que se já faleceram terem seu trabalho finalmente reconhecido, mas ao mesmo tempo se diz feliz em ver que se juntaram ao projeto dela pra realizá-lo e que de certa forma estariam imortalizados, uma vez que o filme vem sendo resgatado e revisto.

A cineasta lembra que naquela época foi muito difícil lançar o filme. A diretora teve que ir pra São Paulo procurar exibidores, onde recebeu indicação do produtor Magalhães que lhe falou sobre a existência de 12 casas exibidoras que talvez se interessassem por seu trabalho. Ele, de fato, gostou muito do filme, mas encontrou um problema. Pediu pra travestir o filme de pornô, pois era o que vendia na época, alegando que filme de arte não vendia. Sugeriu então para driblar esse impasse mercadológico que colocasse a atriz Wilma Dias nua no cartaz, pois a atriz já fazia produções do nicho da pornochanchada na época, e explicou que estava muito difícil lançar o filme sem esse apelo. Wilma falou que, pelo bem do filme e importância do debate necessário que ele trazia, aceitaria aparecer nua no cartaz para que o filme pudesse ser lançado. O crítico Leon Cakoff, na época, em sua crítica, disse que lamentava ver o filme travestido de pornô, e que não tinha nada a ver com o importante tema relacionado na tela, mas foi graças ao texto dele que o filme ganhou vulto e pôde ser exibido no Rio de Janeiro a fim de fomentar o debate do seu conteúdo.

Até hoje Adelia Sampaio manteve o cartaz original de “Amor Maldito” porque naquela época era difícil fazer este tipo de material, mantendo-o, desta forma, como reflexo e marco de um tempo em que fazer cinema no Brasil era bastante difícil. Além disso, Adelia defende a estética utilizada, inclusive as cenas mais sensuais entre as duas protagonistas, pois quando pesquisou o julgamento real, teve acesso a todos os diálogos através de gravações das falas dos advogados do julgamento original. Afirma ainda que quem estava sendo julgada não era ré confesso, nem condenada, mas sim uma mulher completamente comum, porém considerada de alta periculosidade apenas pelo fato de ter se casado com outra mulher. Por conta disso, a personagem sempre aparece nas cenas de Tribunal usando algemas. Adelia conta que após conversar muito com José Louzeiro, corroteirista, acreditava que as angústias da acusada faziam com que buscasse as boas lembranças do que viveu com a pessoa amada, principalmente nas cenas que representavam a espera durante o julgamento, em que a protagonista precisava ficar isolada num cubículo carcerário, tentando buscar boas lembranças em sua memória. Devido a isso, Adelia achava que o filme seria classificado pela censura como exibível somente para maiores de 21 anos, mas acabou sendo classificando para maiores de 18 anos, o que facilitou na distribuição.

Abrindo para perguntas do público, o crítico e professor de cinema, Filippo Pitanga, levanta a questão da necessidade de reconhecimento e estudo do cinema realizado por negros e ainda mais especificamente o recorte das mulheres negras para fins não apenas acadêmicos, como também profissionalizantes no mercado do audiovisual, tema ainda pouco abordado na grade curricular das universidades e cursos de cinema. E, para aproximar a questão da filmografia das realizadoras ali presentes, perguntou também sobre a identidade cinematográfica com o uso da expressão corporal como forma narrativa, que ambas apresentam, Adélia e Yasmin. Mais especificamente aborda o uso de planos detalhes de Adelia, como close nas pernas, pés e mãos como expressão do que as personagens estavam sentindo, uma espécie de consciência do sentimento psicológico do corpo que ia até na contracorrente da objetificação do corpo da mulher no período da pornochanchada. E, no caso de Yasmin, o uso de cores expressivas, da dança e dos cenários como reflexos das emoções da história contada sem precisar de palavras, e da reivindicação de identidade na cor. Finalizou ainda, perguntando como Yasmin pretende passar esta identidade para seu primeiro longa-metragem. 

Yasmin começou respondendo que de fato teve a intenção de dar bastante ênfase ao corpo, à direção das atrizes, à memória do corpo e a forma que se apresentam como um elemento de ativação da memória, inclusive através do uso de som e trilha sonora, do que ouvimos no extracampo, como o som do pente quente passando pelos cabelos, da chapinha, do secador, do alisante usado nos cabelos das mulheres negras. Todos arquétipos de muita familiaridade, não só para a diretora, como para as atrizes. Sons que disparam a história que o corpo das mulheres negras vive e do que cada pessoa do elenco já tinha experimentado. Afirma ainda que tudo começou como uma adaptação do conto que a própria Yasmin escreveu, sobre descobrir o que é ser negra através do racismo, pois a pessoa se descobre negra (parafraseando a famosa citação à Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher: torna-se.”), e só depois vem a adquirir a percepção para ver que não é um problema ser negra. Todas no elenco se reconheciam nas situações do roteiro, era uma questão coletiva e opressiva, como se descobrir negra nos primeiros anos de vida, não encontrar parceiro para dançar na festa junina do colégio e, neste sentido, segundo Thayná, o cabelo coleta o que reproduz o corpo, te identifica, é identidade. O que a encenação te lembra é o que está na sua memória. Para Yasmin, performance é vida, é um pouco de você.

Sobre seu primeiro longa-metragem, Yasmin diz que é a primeira vez que trabalhou com 60 pessoas na equipe, e estava por isso fazendo dois filmes simultaneamente, o curta “Kbela” e um longa, onde pretendia ter ficado no set fazendo o “Kbela”, e os assistentes de direção seriam codiretores entrevistando quem fez o “Kbela”, pra criar uma espécie de documentário que se comunicava com o curta e as histórias por trás de cada um. Mas acabou desistindo deste plano inicial pra escrever uma narrativa mais clássica, uma história de amor entre duas meninas negras. Porém, Yasmin ainda pretende lançar um site contando toda a pesquisa de realização do “Kbela” e experiências coletadas, disponibilizando online todas essas vivências que lhe foram narradas quando da elaboração do filme, talvez até em um formato de série, dividida em capítulos.     

Voltando a falar sobre a importância da parte sonora em seu filme, Yasmin diz que apreendeu muito a partir da própria experiência que ouvia ao circular pela cidade. Morava em Nova Iguaçu, depois Praça Seca em Jacarepaguá, após se mudou para o Campinho e enfim Santa Teresa onde hoje vive. Como trabalha na FGV e estuda na PUC (Gávea), saia de casa muito cedo e voltava apenas muito tarde ficando muito tempo dentro de meios de transporte coletivo o que a motivou a começar a gravar os sons, gritos e coisas até mais violentas que aconteciam neste percurso diário. Foi anotando e escrevendo textos dos sons de agressão, num inventário sonoro do que ouviu e sofreu nesses percursos. Tudo isso acrescentado à inspiração da música de John Coltrane, que também é a trilha do já referido filme “Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul, ajudaram na composição da trilha original gravada ao vivo com sax e bateria, trilha feita em 4 horas de gravação. A diretora diz que foi um verdadeiro transe cênico a composição desta trilha. Informa ainda que as bocas que aparecem em “Kbela” foram inspiração em uma peça de Beckett que foi toda encenada apenas com uso de bocas. Foram muitos os detalhes que foram se agregando até chegar ao resultado final do filme. Thayná acrescenta ainda a decisão do montador que fez uma brilhante composição reversa de imagens em uma cena em que aparece a atriz portuguesa Isabel Martins Zua Mutange pintando o rosto de branco e logo em seguida a retirada dessa tinta branca sobre a pele negra, rebobinando a imagem, como forma de resistência, mostrando o processo de “desembranquecimento”, para enfim retornar as suas raízes.

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cena de “Kbela”

Já Adelia responde à pergunta original, sobre identidade negra no audiovisual e expressão corporal, falando que a coisa mais gratificante para um realizador é quando alguém na plateia percebe tudo o que o cineasta pensou ao fazer um plano como aquele que mostra os pés e as mãos dos atores ao invés de focar na espetacularização do suicídio em si. Adelia revela que os planos detalhes de seu filme “Amor Maldito” vieram muito do fato dela própria ver a vida através dos pés, mãos e olhos, ainda mais em um filme sobre sexualidade, que é uma coisa muito delicada e que lida com psicológico das pessoas. Para Adelia é necessário lidar com a sexualidade de forma delicada, senão há um “estupro” da cena. A personagem da irmã da Miss é um exemplo da consequência de tudo isso, de tudo o que de pior os pais delas tinham a passar para suas filhas, pois pior que virar Miss, é o fato da irmã mais nova provavelmente acabar em um hospício.

Sobre não haver referência negra acadêmica, nem para os negros, nem para os brancos, que também são privados da diversidade cultural e referencial, Adelia acrescenta que são poucos fotógrafos que realmente sabem iluminar os atores negros, por exemplo. Antigamente havia toda uma técnica, inclusive uma lâmpada importada, mas hoje em dia como não se usa mais película, esse cuidado se perdeu. A facilitação dos meios de produção no audiovisual com o digital acabou por mudar o foco para iluminar a cena e não mais a figura e muita gente nem sabe disso. Adelia, por exemplo, diz que tudo o que aprendeu foi no set de filmagens, com a própria experiência de vida. Sobre a estética em si, de um cinema negro, ela cita como exemplo uma cena em que o cineasta Cacá Diegues foi muito criticado por Zezé Motta, por ela ter sido fotografada nua no filme “Xica da Silva”, numa cena sobre o discurso da escrava abusada que, apesar de ser uma bela cena, tem de se debater cuidadosamente como ela vai ser feita, em um diálogo bem grande com a atriz antes de começar a filmar, a fim de se decidir qual foco vai ser dado, para não parecer abusiva ou mal interpretada a sua exposição.

Yasmin, por outro lado, também realça que não fez universidade de Cinema, e sim jornalismo, mas se inseriu nos meios acadêmicos de cinema como ouvinte nas aulas de professores como Cezar Migliorin da UFF, aulas na Escola de Comunicação da UFRJ, a fim de pensar os sentidos da imagem, a semiótica. Além disso ingressou na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, para entender a imagem e ter referências, principalmente pelo fato do corpo docente e discente ser, em sua maioria, de pessoas negras. Apesar de, infelizmente, a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu atualmente estar fechada por falta de verba, Yasmin a considera como a sua principal referência, pois esta foi a única escola em que entrou porque realmente quis, e não pra escapar de outros problemas sociais, pois nela viu a possibilidade de ser alguma coisa. Se não fossem lugares alternativos como estes proporcionados pela Semana dos Realizadores, contribuições notáveis como a de Zózimo Bulbul e da própria Adelia Sampaio, não seriam nem mesmo citadas. Ruth de Souza, por exemplo, também sequer é mencionada academicamente na história de Televisão Brasileira como primeira protagonista negra do país.                         

Como resposta positiva, Yasmin cita a criação do Coletivo Nuvem Negra e parcerias com alguns departamentos dentro da própria PUC. Aliás, a contrario sensu do que algumas correntes afirmam, Yasmin não acredita na desculpa de que a mistura cultural nas artes seja a solução ou que transforme o país numa mistura mais democrática, a falsa ideia do mito da democracia racial tão propalada. Segundo ela, o que se deve fazer é entender como se compõe essa mistura. Entender quem somos e de onde viemos. Como fazer uma troca entre todas estas identidades. Criar redes como a Afroflix, por exemplo, é uma das muitas formas de resistência. Mas, afirma que para isso é necessário atravessar o túnel Rebouças e ir pra Baixada Fluminense, conhecer os outros lados da cidade e da própria história. Pensar quem está fazendo o filme, nas escolhas técnicas e estéticas de quem está atrás e na frente das câmeras.                       

Janaína Oliveira aproveita e pede para acrescentar que a reflexão sobre a parte acadêmica em questão, é sim necessária, mas também preocupante. A própria Janaína fez todas as etapas acadêmicas existentes, mas afirma que elas continuam funcionando dentro de “caixinhas” pré-estabelecidas. Quanto ao cinema, diz que há um desconhecimento muito grande, pois ele ainda é eurocêntrico; todos os currículos de escola ainda o são, e não existe uma disciplina, por exemplo, só de cinema africano sendo ensinado nas escolas de cinema. Alega que quando um aluno quer estudar temas fora do status quo estabelecido, os professores, geralmente, desqualificam o estudo. E apesar de Janaína ser formada em História, e ter estudado cinema posteriormente a isso, sabe que ganha-se outra dimensão vendo filmes estes filmes. Diz que quando você chega para alguém e pergunta se a pessoa já viu determinado filme, porque ele exemplifica um estudo ou uma diversidade que a pessoa deveria conhecer, não é necessariamente com o intuito de constranger a pessoa, mas ao mesmo tempo acaba sendo, porque gera desconforto e o desconforto gera a necessidade de procurar o desconhecido. É importante estar atento não só ao diálogo que está na tela e seus estereótipos, mas, principalmente, o que está fora da tela.

Adélia arremata afirmando que sente que precisou ser uma mulher abusada, ousada, especialmente quando olha para trás e vê o reconhecimento tardio de sua obra por ter sido a primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil, pois desde que viu filmes no cinema quando criança e pensou que era aquilo que queria fazer da vida, entrou no meio dizendo para si mesma que ia se debruçar nesta janela e que iria chegar lá, fazer o seu cinema e deixar seu recado. Sente que deixou mensagens cifradas de avó para neto, assim como antigamente deixava para os filhos também, e esta é uma comunicação que só o cinema poderia ter lhe proporcionado. Todo esse resgate e trabalho de desinvibilização só foi possível porque somente na década de 2010 uma pesquisadora da UNB veio a descobrir que Adelia havia sido a primeira mulher negra a dirigir um longa metragem de ficção no país, quando numa projeção de filmes no subúrbio os curadores queriam chamar a primeira cineasta negra pra debater filmes da periferia, e desta pesquisa chegaram a ela e ao reconhecimento do fato que nem a própria Adélia tinha conhecimento. Aos 13 anos, Adelia disse pra si mesma que faria cinema. Preta, pobre e filha de empregada doméstica, teria que ser louca, mas ao invés disso, conseguiu virar cineasta.

Yasmin encerra o debate agradecendo a tantos aliados que contribuíram com esta nova geração de reconhecimento e inclusão, como negros precursores como Adélia e Zózimo, o Governo Lula, a Escola livre de cinema de Nova Iguaçu, produtoras como a Filmes de Plástico e Preta Portê Filmes com foco em realizadores negros, Editais afirmativos voltados para este reconhecimento, movimentos como o Curta Afirmativo, e todo um momento pra (re)construir narrativas.

Um momento que nem é pra se ter muitas certezas, mas sim para pensar, refletir. Um momento em que foi criada a Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), para perpetuar o território para as próximas gerações e um esforço para que tudo isso não acabe com este governo. E mesmo que ainda haja bem mais homens em um meio que precisa das mulheres e sua visão criativa, a verdade é que precisamos ocupar espaços que não são ocupados por negros, não só ocupar como criar novos espaços.                    

* CARTA ABERTA AO RACISMO ESTRUTURAL OU REFLEXÕES SOBRE ADELIA SAMPAIO EM PORTO ALEGRE:

“Na manhã de segunda-feira (21/11/16) falávamos com Adelia Sampaio sobre sonhos. Adelia, a primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, nos lembrou a graça de sonhar, fez piadas com isso e nos instigou. Estávamos em um carro rumo ao aeroporto. Ela voltaria pra casa ainda naquela manhã. Infelizmente, a realidade de uma mulher negra brasileira ainda é muito distante da sonhada. Adelia Sampaio foi impedida de voltar pra casa como planejado.

Ela retornaria ao Rio de Janeiro em um vôo no aeroporto Salgado Filho, às 10h39. Nos despedimos às 10:00 na entrada da sala de embarque, ainda digerindo o encontro potente e inspirador que aconteceu na noite anterior. Mas logo após, em torno de 11h, recebemos uma mensagem de Adelia dizendo não ter embarcado pois se recusou a tirar a calcinha em uma revista vexatória e, que naquele momento, estava na Delegacia de Polícia para o Turista (DPTUR), sem passagem para retornar a cidade onde reside.

Nossa primeira reação foi de profunda perplexidade. Aos 72 anos, Adelia tem próteses nos dois joelhos e 17 pinos na coluna. Há anos viajando, nunca havia enfrentado problemas para embarcar, tanto no Brasil, quanto no Exterior, visto que avisa com antecedência sua condição para os funcionários do equipamento detector de metais. Dessa vez, porém, foi levada a uma sala fechada por uma Agente de Proteção da Aviação Civil (Apac), que a obrigou a tirar a roupa e agachar-se.

Ironicamente, Adelia veio a Porto Alegre receber uma homenagem. Convidada e acolhida por mulheres negras para segunda edição do cineclube que leva seu nome, exibiu seu icônico filme, Amor Maldito, de 1984. O evento ocorreu no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), na Cinemateca Capitolio, data extremamente significativa para nós, que carregamos em nossos corpos a cor da resistência e da luta pela igualdade racial.

Escrevemos este manifesto ainda violentamente atingidas. Sequer nos foi dado o direito de guardarmos na memória esse encontro com a primeira mulher negra a fazer um longa-metragem no Brasil, sem que esse evento fosse atravessado pelo racismo.

Passamos hoje por um processo de resgate, de tentativa de enegrecimento de nossas memórias, de retomada.
O Cineclube Adelia Sampaio surgiu desse momento. Era urgente, para nós do Coletivo Criadoras Negras, enegrecer a memória e a história do nosso cinema, trazer e homenagear trabalhos de mulheres negras que fazem audiovisual, para dar visibilidade a nossa narrativa. No meio desse processo mais uma vez fomos barradas e obrigadas a revisitar um lugar de dor.

Nossos desejos se chocam frequentemente com essa barreira, com o preconceito. Como se não nos fosse permitido o direito ao sonho. Mas como seguir sem sonhar? Para quê?

Reencontramos Adelia Sampaio mais uma vez pela manhã. Voltamos imediatamente ao aeroporto depois de seu contato, acompanhadas dessa vez de nossa advogada Luana Pereira. Encontramos a cineasta sozinha em frente a Polícia Federal, sem nenhuma assistência, nem da companhia LATAM Airlines, nem da Infraero. Ficamos quase 5 horas com ela tentando garantir seu bem-estar e contatando a imprensa. Foi preciso resistência psicológica e física, projeção midiática e o engajamento de duas advogadas para Adelia retornar sem custos adicionais para casa. Ela tinha os olhos marejados, estava abatida mas seguia forte… ainda conseguiu nos falar novamente de sonho. Rimos!

A felicidade de uma mulher negra, apesar de todas as barreiras colocadas pela nossa sociedade, é uma das maiores possibilidades de transgressão e transformação do status quo. Somos 49 milhões de mulheres negras, isto é 25% da população brasileira, e ainda vivenciamos a face mais perversa do racismo e sexismo. É necessário hoje, mais que nunca, construir uma rede de apoio que permita a partilha e o afeto para nós e conosco.

Enquanto coletivo, queremos manifestar nossa solidariedade e apoio a Adelia, que merece ser tratada com dignidade e respeito em qualquer lugar que frequente. Reiteramos que o ocorrido no aeroporto ontem foi um ato agressivo, fruto do racismo estrutural de nossa sociedade. Racismo esse que faz com que se ache suspeito uma mulher negra pegar avião, que faz com que se ache natural uma mulher negra ser submetida a uma revista inconstitucional (proibida atualmente até mesmo dentro de presídios), onde se ache regular pedir para ela abrir as pernas como se abre um objeto, uma mala… e a vasculhar por dentro.

Sim, uma mulher negra ainda é vista como objeto e se reclamar desta condição pode ser acusada de desacato, como aconteceu com nossa renomada cineasta.

É importante dizer que o que vivenciamos ontem é apenas mais um exemplo dos milhares de relatos diários sem nomes e sem rostos. Adelia tem o privilégio de ser uma artista reconhecida e de ter sido pauta para a imprensa, mas incontáveis outras negras – como nós – passam por constrangimentos e agressões preconceituosas no anonimato. Por elas lutamos, por elas seguimos, com elas sonhamos. Nós por nós. Seguimos!”

Escrevem a carta: Criadoras Negras RS (22/novembro/2016)

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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