[CINEMA] “O Último Tango em Paris”: estupro, silenciamento da mulher e a ausência de punição para agressores

[CINEMA] “O Último Tango em Paris”: estupro, silenciamento da mulher e a ausência de punição para agressores

“O Último Tango em Paris” é um filme de 1972 e já na época ele gerou muito burburinho por conta de seu conteúdo erótico/sexual. Anos depois o filme ficou em meio a uma polêmica, quando a atriz Maria Schneider revelou que houve uma mudança no roteiro e que a famosa cena da manteiga foi inserida no roteiro sem o seu consentimento. Maria acusou Bernardo Bertolucci e Marlon Brando de terem planejado a sequência, mas foi desmentida durante anos, e muitos a trataram como uma jovem atriz desesperada por fama. Maria sofreu de depressão, foi usuária de drogas pesadas, teve que lidar com a lembrança sempre presente de uma cena que ela tanto repudiou ao longo de sua vida e que definiu toda a sua carreira. Maria tinha 19 anos, era o seu primeiro trabalho como atriz, inexperiente, não sabia como se impor diante de um diretor como Bertolucci – já consagrado no cinema – e de um ator como Marlon Brando – cujo nome carregava um enorme peso.

Maria faleceu em 2011 em decorrência de um câncer. Em 2013, Bertolucci em uma entrevista a um canal de TV holandês confirmou o que Maria dizia, mas só em 2016 esse vídeo se popularizou e vem gerando muita revolta. Mesmo assim, vozes em defesa de Bertolucci são muito comuns, a exemplo do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que declarou seu apoio recentemente.

Durante anos as pessoas me disseram pra assistir a esse filme, justamente por ser uma amante do cinema. Diziam que era um clássico, o tipo de filme que muita gente acredita ser uma “obrigação” assistir. Bom, ano passado resolvi pegar o DVD emprestado e conferir.

Até então eu não sabia sobre a polêmica da cena da manteiga, muito menos do que a Maria Schneider disse a respeito ao longo dos anos, apenas sabia o que tinham me dito vagamente a respeito da obra, mais nada. Comecei a ver o filme sem nenhuma expectativa, apenas sabendo que se tratava de um “clássico do cinema”.

De início, um incômodo: a história do filme demonstra-se um tanto quanto limitada. Um homem, que perdeu a esposa decorrente de um suicídio, e uma mulher, que procura por um apartamento para morar em Paris. Os dois se conhecem, quando ela, Jeanne, vai visitar um apartamento, e ele, Paul, está lá. “Instantaneamente” eles sentem um desejo incontrolável um pelo outro e dão início a uma tórrida relação sexual. Um não sabe o nome do outro, como combinado, é apenas sexo.

tanto-6

A semelhança com as histórias de diversos soft porn é inegável, e esse, porém detém o status de “cult”. Algumas cenas depois, mais incômodo: Nudez, mas apenas da atriz. Maria Schneider passa boa parte do filme com alguma parte de seu corpo exposta, na maioria das vezes os seios, enquanto isso, pouco se vê de Marlon Brando, no auge de seus 48 anos. Se foi um filme feito para chocar também, esperava pelo menos que a questão da nudez fosse explorada em ambos os personagens, mas não é isso que acontece e sabemos bem porquê.

Mesmo incomodada com isso, não dá pra não destacar a beleza de Maria Schneider no filme. Não se vê um grande roteiro, nem diálogos bem elaborados, o filme é mais uma exploração do sexo de diversas maneiras. 

Chega então a tal cena da manteiga. Alguns minutos antes, enquanto conversava com algumas amigas, me falaram um pouco sobre a sequência em questão, o que não me preparou inteiramente para o que vi. A forma como tem início já é bem grosseira. Paul nem sequer questiona Jeanne sobre sexo anal, ele segura ela e força o ato usando a manteiga como lubrificante. No rosto dela vemos desespero que causa desconforto, mas não é o tipo de desconforto comum de quando assistimos algo que nos obriga a refletir e aquilo te impacta, foi diferente. Achei a cena pesada e pausei. Comentei com essas mesmas amigas que estava me sentindo mal após assistir a cena, e que achei ela horrível. Uma delas me mandou um texto, e nele tinha o relato de Maria Schneider a respeito da sequência.

Mas espera aí! Sexo sem consentimento é estupro! Não precisa haver penetração, a partir do momento em que o corpo de alguém é usado sem consentimento é considerado como tal. Fiquei enojada. Uma clara cena de estupro romantizada, e não só isso, dois homens planejaram tudo aquilo e acharam que estava tudo bem, que a arte compensa tudo. De forma alguma.

tango-2
Marlon Brando e Bernardo Bertolucci durante as filmagens de “O Último Tango em Paris”

O filme tem duas horas de duração, pausei tantas vezes que se estendeu para quatro horas. Não conseguia assistir mais depois de ver e saber de tudo aquilo, acabei acelerando várias cenas até chegar no final. Nenhum filme até então tinha me causado tanto asco e nem me impactado tanto de forma negativa.

Maria, tão jovem, iniciante, foi tratada apenas como um objeto cênico que poderia ser utilizada do jeito que o diretor quisesse. Ela era uma mera desconhecida, e para a indústria cinematográfica era “ninguém”, comparando-se com Bernardo Bertolucci e Marlon Brando. Bertolucci sabia que qualquer coisa que ela falasse surtiria pouco efeito, e que a grande maioria dos profissionais da área iria apoiá-lo porque ele já conhecia o meio e como as coisas funcionam dentro dele. Por anos Maria foi silenciada, mesmo indo a público dizendo que se sentiu violada ninguém acreditou nela, óbvio. Até sua morte ela repetiu isso e nunca foi levada a sério.

tango-5

Bertolucci esperou Maria morrer para então confirmar o que ela dizia: que ela não sabia da cena e que ele havia combinado tudo apenas com Marlon Brando. O diretor ainda tentou se fazer de coitadinho ao dizer que chegou a pedir desculpas à Maria Schneider, mas que ela nunca aceitou. 

Oportunismo, sim ou com certeza?

Mas não basta falar apenas no Bertolucci porque Marlon Brando também tem grande parcela de culpa nesse caso, até porque o diretor propôs, mas ele podia muito bem recusar fazer, mas não o fez, tornando-se cúmplice da atitude tomada por Bertolucci. Brando não era nenhum iniciante, era um grande astro de Hollywood e podia sim se impor rejeitando, porém achou a ideia do diretor interessante e seguiu adiante.

Triste saber que Maria Schneider passou por tanta coisa e morreu sem receber nenhum tipo de apoio, sem conseguir provar que era verdade tudo o que dizia como acontece todos os dias com mulheres ao redor de todo o mundo, que são silenciadas e desacreditadas quando reportam uma agressão. É ainda mais revoltante ver pessoas achando que essa história é uma grande bobagem, com a defesa de Bertolucci por tratar-se de um diretor premiado e influente, e ainda chamar o caso de sensacionalismo.

tango-7

Sabemos que o Bertolucci não é o único diretor envolvido em casos polêmicos como esse, a lista é extensa. Citando dois dos mais famosos temos Woody Allen e Roman Polanski, que continuam sendo tratados como grandes profissionais e a indústria simplesmente ignora os atos criminosos que cometeram e as vidas que arruinaram.

Não, não dá pra separar a obra da pessoa. É preciso entender que eles cometeram crimes, não pagaram por eles e continuam por aí, impunes, trabalhando e recebendo prêmios. 

Como dizer que luta pelo fim da impunidade, mas não se importar em continuar contribuindo com obras como dos homens citados acima? Será que a vida das mulheres que esses astros arruinaram valem menos do que um Oscar?

Escrito por:

Formada em Rádio e TV, maratonista e viciada em séries, eterna amante de um bom filme, escreve desde quando só conseguia usar desenhos para contar suas histórias, apaixonada por “Titanic” e uma quase bailarina que aprendeu muita coreografia em clipe da MTV. Sonha em morar no Canadá, escrever um livro, ter filhos, ser doula e conseguir colocar suas séries em dia.
Veja todos os textos
Follow Me :