Lúcifer: o divino do ponto de vista do profano

Lúcifer: o divino do ponto de vista do profano

No prefácio da edição número 1 de “Lúcifer”, Neil Gaiman conta como se deram as discussões envolvendo a criação de um possível spin-off da série “Sandman”: sempre que questionado quanto a que personagem ele gostaria de ver em uma série solo, respondia Lúcifer, ao que seu interlocutor nunca se interessava, até que um dia ele foi ouvido, e o antigo rei do inferno ganhou sua própria série – inspiração para a série de TV homônima (Lúcifer – 2015). A série de histórias em quadrinhos foi lançada entre 2000 e 2006, sendo um spin-off da série “Sandman” e acompanha Lúcifer após seu encontro com o Senhor do Sonhar. 

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Lúcifer em “Sandman Apresenta: Lúcifer” edição 1, e Lúcifer (Tom Ellis) na série televisiva

Escrita por  Mike Carey, a revista teve 75 edições lançadas (precedidas por uma minissérie de quatro edições de 1999, também escrita por Carey, intitulada “Sandman Apresenta: Lúcifer”), sendo publicada pela Vertigo/DC durante a já famosa chefia de Karen Berger como editora. A trama se inicia, como já mencionado, logo após os eventos de “Sandman”, onde (aqui vai um pequeno spoiler) Lúcifer decide fechar o inferno e tirar férias na terra, mais precisamente em Los Angeles.  

Contando com muito mais lugares e premissas místicas do que sua contraparte televisiva, “Lúcifer” leva o leitor do céu ao inferno (literalmente), contando com a criação de novos mundos, aparição de diferentes reinos “místicos” (como o Sonhar e o próprio inferno), bem como a participação pequena de alguns personagens que já haviam aparecido em “Sandman”. 

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Aparição de Lúcifer em Sandman – “Sandman” 23

Essa premissa simples (utilizada na série de TV) se desenvolve em uma excelente trama que consegue discutir temas como relações familiares e questões morais relacionadas à ideia de bem e mal (tão cara à lógica cristã). A história ainda serve de palco para personagens muito bem trabalhados que têm em suas recorrências de aparições uma forma de desenvolvê-la e, ao mesmo tempo, de amarrá-la.  

O grupo de personagens principais da trama maior conta com Lúcifer Estrela da Manhã, o manipulador anjo caído e ex-senhor do inferno, que agora durante suas férias em Los Angeles dirige um piano-bar com uma clientela diversa, enquanto é mal visto pelo mundo celestial e questionado pelas hordas infernais que deixou abandonadas; Mazikeen ou Maze, a segunda personagem de maior destaque, braço direito de Lúcifer, tem como marca registrada a máscara que cobre metade de seu rosto, é uma incrível guerreira e membro (posteriormente líder) da família do Lilim (demônios filhos de Lilith ‘a primeira mulher de Adão’); Elaine Belloc, uma garota humana que de início acredita ter nascido com o dom de conversar com os mortos, mas que acaba descobrindo que vem de uma ascendência nobre e importante dentro do mundo celestial; Gaudium, um querubim caído que, de início serviu como guarda-costas de Elaine Belloc e posteriormente se torna, junto com sua irmã Spera, amigo da menina e membro do grupo que normalmente presta alguma ajuda a Lúcifer; Jill Presto, ex-assistente de mágico que é possuída (logo nas primeiras edições) por um baralho de cartas ‘vivo’ que lhe concede certos poderes. Jill se vê algumas vezes como inimiga e outras como aliada do grupo liderado por estrela da manhã. Contando ainda com a participação de personagens como os anjos Amenadiel, Miguel e Meleos; o humano morto Christopher Rudd; e a melhor amiga de Elaine Belloc, Mona.

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No primeiro quadro: Rachel, Spira e Mona sentadas; Elaine Belloc em primeiro plano e Mazikeen com sua máscara. No segundo quadro: Gaudium e sua irmã Spira na forma original. – “Lúcifer” 74

Todos esses personagens estão divididos nos diferentes arcos que compõem a história principal (alguns aparecendo antes, outros aparecendo mais), e mantendo certa importância para a trama se desenvolver. Num elenco tão heterogêneo como este, Carey conseguiu estabelecer muito bem o balanço da participação de cada um enquanto trata de grandes temas como a discussão feita nas entrelinhas sobre o lugar de alguém no mundo (ou nesse caso universos), sendo você um anjo caído, um demônio, uma assistente de mágico ou uma garotinha adotada, todos esses personagens ganham um desenvolvimento bem feito, e muitas vezes inesperado, criando laços entre si e se ressignificando o tempo todo. 

Carey conseguiu estabelecer nesse universo compartilhado com “Sandman” (e dessa forma com o Universo DC da época) toda uma nova mitologia que colocou, quase que literalmente, todas as ‘leis sagradas’ de cabeça para baixo, ao dar espaço para que as coisas fossem vistas do ponto de vista do ‘filho rejeitado de Deus’ e o colocasse como agente de sua própria história.

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Bat-fã, que ama cachorros, quadrinhos, chocolates e coisas velhas. Formada em História pela Universidade de São Paulo; tem como metas de vida trabalhar com arquivo histórico e HQs (de preferência ao mesmo tempo), e convencer sua irmã mais velha de que a Canário Negro venceria em um combate corpo a corpo contra a Caçadora.
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