[CINEMA] “Rainha”: Sabrina Fidalgo descolore o carnaval através do corpo feminino

[CINEMA] “Rainha”: Sabrina Fidalgo descolore o carnaval através do corpo feminino

Rainha” (2016), sexto curta-metragem escrito e dirigido por Sabrina Fidalgo, é uma epopeia pela jornada de uma mulher cujo maior sonho é se tornar Rainha de Bateria da Escola de Samba de sua comunidade. São raros os filmes brasileiros cujo fio condutor seja o Carnaval visto de uma perspectiva em que a mulher é a produtora de significados e não somente uma portadora de signos, um mero “produto” a ser consumido tanto pelos brasileiros, mas, principalmente, pelos estrangeiros.

Sem qualquer olhar exotizador, em “Rainha” vemos um roteiro que acompanha de perto as agruras e as angústias de uma mulher que malha rigorosamente corpo e mente em busca de um ideal de beleza sempre inatingível e que se vê, ano após ano, sendo derrotada por uma oponente que, dentro dos parâmetros imagéticos impostos pela mídia, estaria “acima do peso ideal”. São muitas as questões suscitadas pelo roteiro de “Rainha”. Esse embate pela performance corporal e a crítica a um culto ao corpo que aprisiona, demoniza e fetichiza as mulheres seria a chave mais fácil e evidente de apreensão. Mas o cinema de Sabrina Fidalgo nunca fica na superfície, apesar de costumeiramente lidar com temas relacionados ao cotidiano. Não é à toa que para fazer uma crítica social pungente às relações de raça e classe, Sabrina escreveu e dirigiu “Personal Vivator” (2014), uma ficção científica que tinha como principal embate as relações entre patroa e empregada doméstica, dominantes e dominados. Tema este muito espinhoso na sociedade brasileira que vive sob o véu de uma falsa democracia racial e que a diretora aborda através de uma sátira social com muitas camadas e densidade narrativa.

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Em seu mais recente trabalho vemos Rita, interpretada magistralmente por Ana Flávia Cavalcanti (atriz-fetiche da diretora), que encarna a mulher negra num processo de empoderamento e que vê na dança a forma de alcançar o seu apogeu. Sabrina Fidalgo levanta neste roteiro um questionamento sobre uma das pautas mais caras aos movimentos feministas que é a questão da sororidade (ou a falta dela) entre as mulheres. O clímax da narrativa ocorre quando há o encontro da protagonista, já consagrada como a Rainha de Bateria de sua Escola, com uma gangue de mulheres que a confronta. Numa mistura de imaginação e realidade, sonho ou delírio, Rita é colocada em perspectiva não apenas por aqueles que a desejam enquanto elemento a ser consumido, como também por aquelas que não suportam vê-la em posição de superioridade. Nesse sentido, o filme causa um certo incômodo desestabilizador, pois nos faz refletir sobre como o racismo e o patriarcalismo estão fortemente marcados e arraigados dentro e fora das quadras de escola de samba, entre homens e mulheres, aportando do micro para o macro, evocando às relações de poder mesmo entre aquelas que estariam aparentemente dentro do mesmo sistema de opressão social.

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A acertada opção pelo uso da fotografia em preto e branco que descolore a magia que perpassa o imaginário popular de que o Carnaval é uma grande festa multicolorida, Julia Zakia faz um belo trabalho de luz e sombra que guia a personagem de Rita pelas vielas da cidade, demarcando seus confrontos internos e externos de forma muito eficiente.

A precisão dos enquadramentos jamais objetifica a protagonista, embora a problemática da objetificação do corpo feminino perpasse como tema central de toda a narrativa. E nesse sentido é possível perceber o quanto a diretora foi cuidadosa em suas opções estéticas para retratar os corpos das mulheres em movimento.

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A trilha sonora diegética evoca uma exaltação das ancestralidades africanas da personagem como podemos observar na belíssima primeira tomada do filme (que será retomada ao final) em que a mãe da protagonista faz uma reza abençoando e invocando proteção para a filha recém coroada. Some-se a isso ao interessante uso do extracampo para demarcar os sentimentos de Rita através do ótimo trabalho de som realizado por Vitor Kruter, Gabriel Marinho e Beto Mendonça.

Como não podia deixar de ser, a consagração do filme veio em forma de premiação. “Rainha” ganhou o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular do Panorama Carioca no Festival Internacional Curta Cinema (2016), deixando evidente a marca autoral da diretora e chamando a atenção para o conjunto de sua obra.

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É possível ver um diálogo interessante entre a ficção proposta em “Rainha” e o curta-metragem documental “Pele de Pássaro” (2015) onde a diretora Clara Peltier acompanhou, ao longo de um ano, a vida de uma famosa passista de Escola de Samba em suas múltiplas jornadas de trabalho (das quadras aos desfiles e às festas) mostrando e desmistificando como a performance corporal da mulher que é ícone de uma sensualidade marcadamente exuberante pode ser dicotomicamente libertadora e engaiolante ao mesmo tempo. Essa dualidade narrativa, seja na ficção de Sabrina, seja no documentário de Clara, serve como mecanismo de reflexão para apreendermos a complexidade de ser mulher, e principalmente mulher negra, numa sociedade carnavalesca regada a samba, suor e lágrimas.

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Ao final da projeção, impossível não correlacionar “Rainha” ao famoso texto em que a feminista Audre Lorde afirma que não existe hierarquia de opressão:

“Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você.”

Aproveite e confira a entrevista na íntegra que realizamos com a cineasta Sabrina Fidalgo, onde falamos sobre a retrospectiva de sua carreira, seus projetos e temas como cinema, racismo e feminismo.


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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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