Class: a escola de companions do Doctor Who

Class: a escola de companions do Doctor Who

Saudações, whovians! No meio de todo esse buraco negro de espera pela 10ª temporada de Doctor Who, tivemos a boa estreia do spin-off Class“, criado pelo escritor premiado Patrick Ness. A série acompanha 5 adolescentes e uma professora se defendendo de ataques alienígenas constantes no colégio Coal Hill School, que faz parte do universo whovian desde a série clássica, de 1963 e onde lecionou a última companion, Clara Oswald.

Voltada para o público adolescente, a série surpreende por trazer questões psicológicas bem interessantes sem sair do tom cômico e leve que todo mundo já conhece em “Doctor Who“.

Primeiras impressões e o teste Bechdel

Minha primeira impressão de “Class” veio mesmo antes dela estrear. Isso porque logo que aconteceu o atentado à boate LGBT Pulse em Orlando, Patrick Ness adiantou via Twitter que a série teria um personagem principal abertamente gay, declarando que a surpresa já não tinha mais importância diante daquele momento de luto e luta. Isso já não era novidade no universo de Doctor Who, mas me causou uma expectativa positiva por ser criado por um escritor gay que dedica suas obras principalmente ao público infantil e juvenil.

E então os primeiros minutos da série entregam um diálogo que só alimenta a curiosidade. Coal Hill se prepara para o baile anual de outono, quando somos apresentados à duas das protagonistas, April e Tanya. Num diálogo que começa falando sobre baile e estudos, April introduz garotos no meio, o que deixa Tanya decepcionada.

Essa citação me lembrou imediatamente um artigo de Letícia Arcoverde, que questiona se uma série é boa só de passar no teste Bechdel. Patrick Ness deu o pontapé para a representação feminina na série ali. Apenas citar o teste não é grande coisa, claro, mas isso ajuda a atentar o olhar para os próximos episódios. E fazer isso numa série para adolescentes é animador. Para fins de curiosidade, sim, a série continua acertando no teste até o último episódio.

Representatividade em “Class”

Logo depois de citar o teste Bechdel, outro diálogo traz uma observação bem shade sobre representação negra no entretenimento. E a partir daí cada personagem é apresentado individualmente. Como já dito, o núcleo principal tem 5 adolescente e uma professora.

April é uma garota branca que todo mundo acha legal, mas ninguém tem realmente nenhum interesse nela, o que a faz uma espécie de deslocada socialmente. Tanya é uma menina inteligentíssima, que está 2 anos adiantada no colégio e é descendente de uma família nigeriana super protetora. Ram é o galã da escola, jogador de futebol, com dificuldade em matemática e de descendência indiana. Matteusz é um garoto simples de origem polonesa, com uma família super religiosa que não aceita sua homossexualidade.

Charlie é um príncipe alienígena gay, último de sua raça, que busca refúgio na Terra após o massacre em seu mundo, se transformando em um estudante regular da Coal Hill, não entende ironia e leva tudo ao pé da letra. E finalmente a professora, Miss Quill, alienígena do mesmo planeta de Charlie, porém de uma raça rival, que também teve seu povo totalmente exterminado e é obrigada a obedecer o príncipe por ser prisioneira-escrava do garoto.

Todos esses personagens tem um desenvolvimento bem interessante e cheio de reflexões. Além de ter muitos problemas da vida adolescente, também tem muita trama psicológica com relação às atitudes diante dos ataques alienígenas, assim como em Doctor Who, só que de uma perspectiva completamente diferente e por vezes imatura.

Tanya tem uma mente bem afiada e é responsável por vários questionamentos sobre o papel do negro na sociedade e no entretenimento. Esse é um tema recorrente e importante pra ela, que tem consciência de que precisa se esforçar muito mais do que os outros pra ser reconhecida.

Ram já tem uma atitude um pouco diferente com relação à sua origem. Ele respeita bastante a família, mas não parece ter um interesse especial na cultura indiana, nem em questionar sua raça diante da sociedade. Talvez por ser um garoto muito popular na escola.

De qualquer forma, a única personagem de origem britânica é a April. Isso num contexto ainda muito delicado de imigração no mundo todo. Parece que Class quis abraçar tudo duma vez, sem subestimar ou proteger o público adolescente do real, de refletir sobre assuntos considerados tabus. Sem falar nos personagens homossexuais. Claro, é uma tarefa também muito pretensiosa e às vezes Class parece exagerada nesse ponto, mas no geral isso é bem positivo.

Matteusz tem algumas brigas com os pais por causa da sua sexualidade, porém essas brigas são apenas citadas. E isso é bem interessante na série, porque o roteiro reconhece o preconceito que existe, mas não naturaliza. Patrick Ness tuitou que uma das crenças fundamentais dele é que uma das formas de mudar o mundo é agir como se ele já tivesse mudado.

De fato, a forma como é apresentada a sexualidade de Charlie e Matteusz na série é tão natural que é quase como se eles dissessem “Eu gosto de sorvete”. E a única reação possível é “Pô, legal!”. hahaha E esse relacionamento de fato acontece, com namoro sério, declarações de amor eterno young adult way, e até sexo.

Escravidão e sociedade matriarcal

Se você acha que acabou por aí ainda tem mais duas questões que achei bem interessantes pra se discutir. Uma é bem óbvia na série desde o primeiro episódio: a relação Charlie-Miss Quill.

Assim que os personagens são devidamente apresentados, sabemos que Miss Quill foi considerada uma criminosa no planeta onde Charlie era príncipe e como punição teve um animal implantado no seu cérebro. Esse bichinho explodiria ao menor sinal de desobediência da Miss Quill, obrigando-a a seguir e proteger Charlie onde quer que ele fosse.

É fácil entender isso como uma punição, mas no decorrer do enredo começa uma dúvida geral sobre se é só uma punição mesmo ou escravidão de fato. Parece banal falando assim, mas inserido no contexto da série essa reflexão é bem interessante. E o tempo todo você tende a se colocar no lugar ou de Charlie ou de Miss Quill.

Outro detalhe apresentado pode passar despercebido, mas a sociedade na qual Miss Quill nasceu era matriarcal. O papel da mulher era muito essencial em todos os aspectos. Eu quase achei que era uma sociedade só de mulheres de início, mas depois entendi que não.

A crença da raça dela é de que uma deusa teria gerado todos eles. Era sempre esperado que a primogênita fosse mulher. E o sacrifício e honra da mãe era dar a luz para que seus filhos comessem seu corpo morto após o parto, como sua primeira energia de vida. Bizarro, né? Mas é interessante demais, pode falar! Me lembrou muito “Flagelo”, quadrinho de Puiupo presente na antologia “Topografias”.

“Class” é boa mesmo?

Até agora só falei pontos positivos, mas não criemos pânico! É sempre bom lembrar que o público alvo da série é o adolescente. E embora isso traga coisas muito interessantes, como a aparente onipotência da juventude, não sei por que cargas d’água entretenimento pra adolescente SEMPRE tem muito romance eterno, não-posso-viver-sem-você, etc.

Além disso, “Class” segue certas fórmulas preconcebidas para esse público, o que pode aborrecer um pouco quem não é, e até mesmo quem é. Também é justo afirmar que muitas dessas observações que fiz passam facilmente despercebidas. Vi muito da repercussão dizendo que “Class” é muito rasa, boba, leve demais. Não é! Mas se for assistida passivamente, não vai passar de adolescentes brincando de super heróis.

Mais uma coisa que talvez seja uma visão puramente pessoal ou um problema a ser resolvido na próxima temporada: existe uma certa questão sobre genocídio que não ficou muito bem conectada com o Doctor e sua missão de proteger o universo.

Mas SIM, a série é ótima. É preciso vestir o adolescente em você e prestar atenção nas coisas importantes. E pra quem é fã do universo whovian, já é meio caminho andado, já que a série principal também usa um pouco do mesmo recurso narrativo.

Destaque especial para o episódio 6: Deteined. Os 5 estudantes ficam presos numa detenção e tem que confrontar algumas verdades desconfortáveis que eles não diriam pra ninguém. O episódio tem um formato e um enredo muito bom tanto pro público adolescente, quanto pro geral. A temporada completa de “Class” já pode ser encontrada online com facilidade.

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39 Textos

Bagunceira e bagunçada, por dentro e por fora. Prefere ver séries em maratonas, menos Game of Thrones, porque detesta spoiler. Totalmente apaixonada por desenho e animação. Tem mania de citar filmes em conversas, conselhos, brigas ou onde couber uma referência. Prefere gastar dinheiro com quadrinhos do que com comida, sendo muito entusiasta do quadrinho nacional e graphic novels em geral. Formada em Jornalismo, mas queria mesmo trabalhar com roteiro e ilustração.
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