[CINEMA] “Baronesa”: sobre mulheres que resistem (Mostra de Tiradentes)

[CINEMA] “Baronesa”: sobre mulheres que resistem (Mostra de Tiradentes)

“Baronesa” (2017), filme de estreia de Juliana Antunes, abriu a Mostra Aurora, na qual são exibidos os filmes em competição na 20° Mostra de Cinema de Tiradentes. Nesta edição, que propõe a reação e a reinvenção do cinema, repensar o lugar do feminino, assim como as suas representações, se mostra urgente, e a escolha deste filme para abrir a Mostra Aurora não poderia ser mais potente.

Alguns filmes deixam marcas profundas pela forma que nos atravessam. A hibridez de “Baronesa” demonstra o vigor com o qual a diretora encarnou seu projeto com visceralidade. A rede com que tece a ficção e a realidade deixa o espectador sempre sobressaltado tentando mapear o que é encenação propriamente dita e o que é apreensão do real; o quanto as personagens construíram junto com a diretora e o quanto o lugar da câmera afeta aquela realidade.

O ponto de partida do filme por si só já é um grande feito. Afinal, inúmeros projetos retratando bairros periféricos fazem parte da nossa cinematografia. Há até uma categoria de cunho pejorativo para tal: “favela movie”. Porém, “Baronesa” passa ao largo disso já que é uma antítese aos elementos característicos do gênero, uma vez que o tráfico, a questão da violência, das drogas e do protagonismo masculino são subvertidos pelo olhar de resistência da mulher.

Trazemos, portanto, uma reflexão e uma inquietação: em quantos destes filmes o olhar é guiado exclusivamente por mulheres? Na frente e por trás das câmeras? O tour de force que Juliana Antunes e as protagonistas Andrea e Leidiane vivenciam na montagem final de 73 minutos é um exercício narrativo que merece um olhar atento e acurado. Montagem, aliás, feita por Rita Pestana e Affonso Uchoa. Este último, diretor de “A vizinhança do Tigre” (2014), no qual Antunes claramente se inspirou tendo inclusive o colocado como seu “guru espiritual” nos créditos finais.

Leidiane Ferreira em cena do filme

Num bairro situado na periferia de Belo Horizonte, encontramos as amigas e vizinhas Andreia e Leidiane. A primeira, manicure, está economizando para se mudar para o bairro Baronesa, onde aparentemente, o tráfico de drogas (e a guerra que o acompanha) ainda não chegou. A segunda, a espera do marido que está preso, cria sozinha os filhos. Ao lado dessas mulheres fantásticas está quase sempre Negão (Felipe), um amigo que rende inúmeras cenas de alívio cômico e catarse.

A vigorosa performance que abre o filme ao som de “A menina dança”, de Mc Delano parece, a princípio, estar deslocada da narrativa que abraça as protagonistas. Mas, é curioso notar que ela insinua um aviso de que o que veremos a seguir foge dos estereótipos que a mídia e os jornais ajudaram equivocadamente a construir sobre ser mulher e viver em um bairro periférico. Nesse sentido, percebe-se um grande cuidado da diretora em não objetificar aqueles corpos que já carregam as marcas e os símbolos que insistem em distinguir os diferentes agentes sociais. Esta personagem, inclusive, virá a encampar um debate interessante sobre constituição do matrimônio e sexualidade.

Com um resultado extremamente eficiente, “Baronesa” explicita alguns temas caros que não precisavam ser verbalizados, uma vez que as imagens já dão conta da complexidade daquela realidade. Mérito da excelente fotografia de Fernanda de Sena que capta o cenário com um apurado senso estético ao deslocar, desconstruir e depurar o olhar do espectador. Maternidade, violência, solidão, estupro, prisão, falta de perspectiva, desejo, sexualidade, monogamia, sororidade, evasão e solidariedade, são algumas das muitas questões que perpassam o filme.

Importante ressaltar que só foi possível realizar este filme devido a total ausência de maridos/companheiros de algumas personagens no momento das filmagens. A que performatiza a cena de dança no primeiro plano, por exemplo, poderia ter rendido ainda mais se o marido não a proibisse de participar do filme. Essas questões referentes ao extracampo, apenas tornam mais nítidas a enorme opressão de gênero que há no cotidiano dessas mulheres.

As opções estéticas e estilísticas de Juliana Antunes, assim como o fato de o roteiro ser reescrito a cada dia, na medida em que o cotidiano ia invadindo as filmagens, remete aos excelentes “A Maçã” (1998) e “O cavalo de duas pernas” (2008), ambos da iraniana Samira Makhmalbaf (recomendamos o excelente podcast do Feito por Elas), nos quais a diretora também teve que lidar com a questão ética que envolvia o docudrama que desenhava partindo da realidade fática de seus protagonistas. Tanto lá como aqui, principalmente em relação as cenas que envolvem crianças, é suscitado um grande debate sobre o quanto, por quem e como o cinema pode e deve se apropriar do real para contar uma história.

Por fim, impossível não mencionar que algumas cenas nos acompanham mesmo finda a projeção. Inegavelmente, o momento em que Andreia se coloca como a baronesa de sua própria vida e começa a erguer sozinha a nova casa, tijolo por tijolo, renovando um ciclo com outro alicerce, cujos únicos companheiros são um copo de cerveja e um cigarro, é um dos mais poéticos e belos desse começo de 2017.

Feito com verba de curta-metragem e uma equipe inicial de 5 mulheres, “Baronesa” é um filme de “guerrilha”, na frente e atrás das câmeras, cuja arma é a imagem. Saiu da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes levando o Prêmio de Melhor Filme da Mostra Aurora. Além disso, Fernanda de Sena ganhou o primeiro troféu Helena Ignez por seu trabalho na direção de fotografia do filme.

* Texto revisto e ampliado em 29/01/2017.

Escrito por:

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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