[CINEMA] A Odisseia de Alice: Uma marinheira desbravando sentimentos (Crítica)

[CINEMA] A Odisseia de Alice: Uma marinheira desbravando sentimentos (Crítica)

Quantos filmes cuja protagonista é uma mulher marinheira você já viu? A Odisseia de Alice, de Lucie Borleteau, nos faz pensar se realmente é preciso que seja uma mulher a dirigir um filme para que este argumento seja transformado em roteiro. Impossível não pensarmos no livro “A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, onde ela desmistifica a imagem de mulheres nos campos de batalha tal qual comumente vemos representada nas artes. Ao reescrever a história da Segunda Guerra Mundial sob a perspectiva de um protagonismo feminino, a autora dá voz a mulheres que ocuparam funções de franco-atiradoras, pilotas de tanque, soldadas que efetivamente lutaram contra as tropas nazistas de Hitler.

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Em A Odisseia de Alice, apesar de não remeter a nenhuma guerra, a diretora também mexe com o imaginário do espectador que raramente vê um filme em que a protagonista é uma engenheira que abre mão do convívio diário com familiares, amigos e namorado em prol de uma carreira profissional embarcada por meses em enormes navios cargueiros. Que se masturba pensando no namorado; se aventura em cada porto afirmando que já teve relações sexuais nos cinco continentes; que vive um triângulo amoroso, mas sem jamais perder de vista a sua individualidade e seu foco maior que é a sua realização profissional. O combustível afetivo é, portanto, a mola mestra das relações dentro de um navio batizado de “Fidelio”. Inspirada por experiências contadas por terceiros, a ideia inicial era rodar um documentário sobre essa personagem extremamente interessante, mas foi na ficção que Ariane encontrou o melhor caminho para contar a sua história.

O roteiro assinado por Borleteau, Clara Bourreau e Mathilde Boisseleau é simples, mas extremamente eficiente, onde temas como fidelidade (aproveitando-se o nome do navio onde se passam 90% das filmagens), cultura do estupro, relações de poder em âmbito profissional, questões de gênero e sexualidade, frente a liberação da mulher moderna, são costurados de forma naturalista, sem qualquer fetichização ou tom feminista panfletário. A direção segura de Borleteau utiliza bem as locações e transforma o próprio navio em personagem na medida em que seus enquadramentos e o modo como os corpos são filmados dão o tom da narrativa.

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Outro ponto alto do filme é a excelente atuação de Ariene Labed, que lhe rendeu inúmeros prêmios, como no Festival de Locarno (2014). Curiosamente, a atriz costuma escolher papéis que fomentam o debate sobre a representação da mulher na sociedade, como o grego “Attenberg” (2010), de Athina Rachel Tsangari, e o francês “The Stopover“, das irmãs Delphine e Muriel Coulin. Neste último, Ariene interpreta uma soldada no pós guerra.

Apesar da cena final mostrar uma certa ambiguidade quanto aos sentimentos da protagonista, a diretora, neste seu longa-metragem de estreia, recebeu inúmeros prêmios, com destaque para melhor filme de estreia no César (2015), o prêmio da Imprensa Francesa (2014) e o prêmio especial de cinema europeu na competição pelo Leopardo de Ouro no Festival de Locarno (2014).

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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