[LIVROS] Destinos e Fúrias: O mito do casamento recontado por Lauren Groff

[LIVROS] Destinos e Fúrias: O mito do casamento recontado por Lauren Groff

Destinos e Fúrias, escrito pela autora Lauren Groff e publicado pela editora Intrínseca, propõe-se a retratar um casamento de mais de duas décadas. Dividido em duas partes – Destinos” e “Fúrias” – revela duas visões sobre um casamento que aos olhos de todos tendia ao fracasso. Porém, mais do que abordar as dificuldades de um casamento, Destinos e Fúrias apresenta uma interessante visão sobre o julgamento da sociedade e uma reflexão sobre o papel da mulher nela.

[NÃO CONTÉM SPOILERS]

A primeira parte – “Destinos” – apresenta a versão romântica de Lotto. Lancelot Satterwhite, mais conhecido como Lotto, nasceu na Flórida, onde cresceu segundo a moral de uma mãe religiosa e sob os mimos de uma tia solteira – solteira, livre, desimpedida pelos olhos da narrativa, mas mal compreendida pelos personagens. Já nessa época moldava-se a personalidade “bondosa” com que seria reconhecido, uma bondade adquirida de seus privilégios enquanto homem branco herdeiro de uma grande fortuna. E nesta bondade e em seu carisma, Lotto compensava a ausência de beleza que as espinhas lhe causaram, como diziam.

Admirado por todos, ninguém compreendeu quando, após apenas 2 semanas de namoro, Lotto casou-se com Mathilde Yoder, uma mulher de estranha aparência – bela ou não, a depender do interesse de quem lhe atribui a beleza – e reconhecida por sua frieza. O casamento não duraria mais que um ano, era a aposta. Todavia, ele durou; passaram-se décadas, e o mito dos motivos que os mantinham juntos ainda os cercava.

Como um homem com as qualidades de Lotto poderia manter-se fiel a uma mulher como Mathilde? No caso dela, todos diziam que era interesse. Sim, Lotto era rico. E mesmo quando sem dinheiro, Lotto mantinha-se como o centro das atenções. Todos amavam Lotto. Todos sabiam que ele tinha um futuro brilhante. Lancelot, o dramaturgo adorado. Lotto, aquele que amava homens e mulheres e que os transformava em personagens épicos.

“[…] – Você é muito bom em enganar a gente, não é? É tão charmoso que nos faz esquecer que, no fundo, é preciso ser um serial killer por dentro para fazer essas coisas com a gente. Você nos coloca nas suas peças, com todos os nossos defeitos, nos mostrando como se fôssemos atrações esquisitas de um circo. E o público lá fora curte isso.”

Havia, porém, aquele Lotto arrogante que todos preferiam não enxergar. Aquele que amava as mulheres, mas que acreditava que o talento delas era a maternidade. Que apreciava homens como gênios, mulheres sobre a sua cama. Que não enxergava problemas nas aparências, mas que não via mais do que atos nas pessoas. Que era bom e ingênuo, e via o mais belo da vida, porque nunca precisou, nem foi ensinado a enfrentar o lado feio dela. E também havia seus segredos, um passado com drogas, um internato, um suicídio, um professor. Sempre há segredos.

E de segredos é feita a vida da odiada Mathilde. A vilã da história pelos olhos de todos os que amavam Lotto. A jovem interesseira de sorriso gelado. A mulher que somente era santa pelos olhos de Lotto – era santa, lavava a roupa, cuidava da casa, pagava as contas, embora nunca tenha lhe dado o filho que desejava.

Mathilde Yoder, francesa americanizada. Aquela cuja família rejeitou, sobre quem desde cedo homens colocaram os olhos, e que muito antes se viu sozinha no mundo. Vilã ou vítima? Difícil afirmar. Mathilde era dotada de um lado obscuro, uma perversidade moldada pela vida unida a uma incompreensão. Se Lotto encontrava flores, Mathilde encontrava espinhos. E por sua personalidade tornava-se árduo o trabalho dos demais personagens de encontrar algo mais que interesse. Na falta de qualidades, julgavam-na e atribuíam-lhe defeitos.

“- Você presume muita coisa sobre mim. Mas não fale por mim. Não pertenço a você.”

Em “Fúrias”, o romantismo se quebra. A utopia da arrogância de Lotto transforma-se no realismo de Mathilde, a menina talentosa, mas cujo talento era ocultado pela falta de carisma. A mulher que cresceu acreditando que era uma vilã, que se apaixonou por seu oposto, pela luz de Lotto. A mulher que queria ser livre, que não queria ter filhos. A mulher que perdeu a esperança de ser algo grandioso e que se colocou à disposição daquele que poderia ser. E Mathilde fez muito por Lotto.

“A história das mulheres é a história do amor, de se fundir no outro. Uma pequena divergência: querer afundar e não conseguir. Ser deixada sozinha no naufrágio […]. Até mesmo a história mais suave e delicada continua sendo uma versão modificada da que foi citada anteriormente. No popular, na chave da burguesia, reside a promessa do amor na velhice para todas as boas moças do mundo. […] Ah, companheirismo. Ah, romance. Ah, completude. Perdoe-a se ela acreditou que seria assim. Foi conduzida a essa conclusão por forças maiores que ela.”

Destinos e Fúrias pode parecer querer expor apenas as mentiras e interesses envolvidos neste casamento, mas faz mais que isto. O livro fala sobre uma união realista, mantida por segredos, verdades e inverdades. Aborda a conexão entre pessoas e seus problemas e como uma moldava a outra. Lotto significava muito na vida de Mathilde, da mesma forma que ela significava na dele. O que poucos enxergavam, cegos pelo brilho de Lotto, é que os dois se complementavam de uma forma que poucos conseguiam se complementar. Ignoravam os defeitos dele, para colocá-los nela, sendo que ela era parte significativa da glória de Lotto.

Através de personagens bastante diversificadas e, principalmente, da relação entre Mathilde e Lotto, Lauren Groff evidencia a figura feminina e discute a sua posição na sociedade contemporânea – como mãe, esposa, solteira, heterossexual, homossexual, mulher -, colocando em dúvida um pretenso amor ao feminino – mito entre homens que se dizem amar mulheres – e o machismo ocultado pelo discurso romântico.

Por fim, Destinos e Fúrias é um excelente livro, dotado de uma escrita espetacular, com uma narrativa coerente, uma ótima finalização e personagens tão bem descritos e desenvolvidos que provocam sentimentos controversos no leitor. Lauren Groff escreve de uma maneira única, mesclando em sua prosa elementos da dramaturgia e significativos trechos de reflexão, o que retarda um pouco a leitura, mas a transforma em uma grande experiência.


Destinos e Fúrias Destinos e Fúrias

Autora: Lauren Groff

Editora Intrínseca

Ano: 2016

368 páginas

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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