Andréia Pires: Vando Vulgo Vedita e o uso de corpos como linguagem

Andréia Pires: Vando Vulgo Vedita e o uso de corpos como linguagem

Vando Vulgo Vedita” (2016), dirigido por Andréia Pires e Leonardo Mouramateus, sagrou-se como o grande vencedor na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2017), na categoria curta-metragem, levando o prêmio do Canal Brasil e o de melhor filme na Mostra Foco (júri da crítica). Um filme irreverente que trata com humor e tensão temas complexos como fluidez de gênero, liberdade de expressão, liberdade sexual, liberdade corporal e violência.

Entrevistamos Andréia Pires, que além de atriz, preparadora de elenco e bailarina, agora também se debruça na direção cinematográfica com este curta-metragem que foi ovacionado por crítica e público. Neste filme, Andréia emprega sua bagagem do teatro e da dança para criar uma linguagem corporal ousada com a qual os atores exprimem metáforas sobre o cotidiano de uma grande cidade do nordeste brasileiro.

Delirium – Como começou o seu trabalho com o grupo Vagabundos e como foi a sua transição do Teatro para o Cinema?

Andréia – Bem, meu trabalho com VAGABUNDOS nasce numa disciplina do curso de teatro da UFC, onde fui professora substituta emprestada do curso de dança. Em 2013, houve uma explosão intensa das manifestações da grande massa, não era uma exibição de artistas nem mesmo de intelectuais, mas uma ação que emergiu da opressão, da necessidade, do  desejo de que algo na vida brasileira se transformasse. A peça existiu e depois foi retomada, mas já com outros atores que não faziam parte daquela turma.

Nesse trabalho usamos uma tonelada de roupas que cobre todo o palco, o que imediatamente se relaciona com o primeiro curta-metragem do Leo [Leonardo Mouramateus – codiretor do filme], chamado “Fui à Guerra e não te chamei” (que atuei junto com Daniel Pizamiglio). Este filme também se tratava de uma guerra de roupas gerada por duas pessoas.  A peça se tornou um manifesto que aborda de maneira muito simples a cultura de massa e o modo de viver junto na diferença, isso  com uma grande quantidade de atores onde não há personagem nem protagonista. Além da peça temos as “ações vagabundas”, que são performances realizadas pela cidade.

Quanto à transição do Teatro para o cinema, acho que ela não existiu. Não saí do teatro pra fazer cinema, acho que sempre fiz cinema junto com teatro, quando atuei em filmes ou quando fiz preparação de elenco, ou quando ouvia os roteiros dos amigos, eu era tão do cinema quanto dirigindo. Já fiz um filme em casa também, com o meu queridíssimo Girino, chamado A FERA DO CLIMA, exibimos uma vez só, mas faz parte desse cinema transacional.

A questão é que o cinema, como linguagem, escolhe o diretor como protagonista, como a figura mais importante do cinema, se não for ele, é o ator principal que fica famoso por sua aparição na grande tela. É como se fosse uma história de protagonistas, assim como foi a história do Ballet Clássico, uma dança para primeiros bailarinos.  Nossa, seria tão mais justo e viril entender que um filme é um negócio sem dono, que mesmo sendo feito por uma só mão, essa mão é um corpo que é montado por histórias e acontecimentos, lembranças e invenções.

Não estou aqui diminuindo a figura do diretor, considero e dimensiono a sua importância, mas acho válido refletir sobre a política que temos construído dentro dos nossos fazeres. O Teatro é um monstro e ele não cabe no cinema. A gente não consegue dar conta do corpo por meio de uma câmera. Acho que se inventa uma outra coisa que não é a representação de um corpo quando se faz um filme. Deve ser algo extraterrestre, algo misterioso, sem nome! (risos)

Delirium – Como e quando começou sua parceria com o Leonardo Mouramateus e como foi a divisão de trabalho na direção de Vando Vulgo Vedita?

Andréia – Nosso encontro não começa no Vando, mas nas ruas. Em 2010 trabalhamos  juntos numa peça chamada CAVALOS,  éramos um trio: eu , Leo e Daniel Pizamiglio, um trio de cavalos. Eu e Dani dançávamos e Léo nos acompanhava pensando a dramaturgia com a sua sabedoria de monge. Partindo disso estávamos sempre perto, Léo foi construindo seus múltiplos filmes e eu fui desenvolvendo coisas pela cidade com dança, teatro, performance, etc. Estávamos juntos mesmo com sua ida para Lisboa, onde já morava o Daniel. Assim fomos vivendo, como amigos e fazedores de ações no meio do mundo.

Com relação ao VANDO,  há uma divisão clara, porque Léo já tem muita experiência com direção de cinema e eu não, minha experiência era de trabalhar com aqueles atores, com o corpo e com a precariedade. Ele que estava perto do Tomás, que montou o filme, e acabou montando junto; ele que na hora de filmar organizava o funcionamento das câmeras e ele que fez o filme ser um filme e não outra coisa.

Eu tive uma experiência extensa na  Bienal Internacional de Dança com a Barra do Ceará (bairro que foi feito o filme)  fiquei muito impressionada com o lugar e decidi que queria fazer um filme lá. Seria a única maneira de levar as pessoas até lá, levar até aquela praia nada cult, nada parte do circuito turístico da cidade, um pouco dessa mistura. Junto disso, queria fazer um filme sem protagonista, sem alguém que faz a história acontecer, mas que fosse uma cena de todos e ao mesmo tempo, que não fosse uma cena perdida ou uma cena que é sobre tudo e não é sobre nada.

Nosso protagonista não aparece. Não existe. Morreu. Foi morto. Ou mataram. Ou é todo mundo ao mesmo tempo. É mais importante o que acontece do que  quem faz a coisa. No teatro e na dança trabalho com muitas pessoas, e queria fazer o mesmo do cinema e numa semana de encontro com Léo fomos achando uma narrativa relacionada às pessoas que vivem em Fortaleza. Agora temos um filme e importa menos a divisão de papéis que o movimento gerado.

Andréia Pires - Vando Vulgo Vedita
Cena de “Vando Vulgo Vedita”

Delirium – Como surgiu a ideia de unir os universos pop contidos no título do filme?

Andréia – Foi um acidente. Saltamos do vampiro (nome de um “pichador” de Fortaleza) para Vedita (Vegeta) por conta dos cabelos loiros. Calhou.

Delirium – Como foi o trabalho de laboratório com a equipe para a sinergia de corpos em cena e para criar uma fotografia tão próxima do grupo? E como surgiu a escolha da música na cena da praia que sintetiza tão bem o argumento do filme?

Andréia – Não houve laboratório para o filme, porque já trabalhávamos juntos num espetáculo completamente físico, o VAGABUNDOS, seria meio ridículo tentar algo com eles. Houve encontros na minha casa onde, por conta do Leonardo William e do Felipe Bira (atores) que estavam inventando um projeto chamado Banda GLAMOURINGS de onde nasce a música VAMPIRO SEXUAL, algo muito precioso e super parte do que eles eram, surgiu um impulso musical. Então, ao vê-los cantando foi vibrante perceber que aquela composição podia se tornar cena. Nesses encontros a gente conversava, ouvia sons, desenhava e falava das ideias do filme.

O argumento foi se acoplando a existência daquelas pessoas. A fotografia do filme é do Victor de Melo, ele com a sua generosidade e percepção absurda, carrega uma câmera na mão e filma como uma videodança os corpos do elenco. Ele estava disponível e isso tornou possível o encontro com  a Barra. Talvez se houvesse desconfiança de alguém no set, o filme não teria o fluxo de um rebolado sexy.

Delirium – Como é o cenário real no Ceará hoje, que fomentou a denúncia que é feita no curta? A equipe do filme teve a contribuir com o roteiro trazendo histórias de casos pessoais?

Andréia – A gente vive muito em Fortaleza, o Ceará é grande demais pra gente falar aqui. Fortaleza é uma capital pobre gerada por pessoas muito, muito ricas. Diria que é uma cidade dividida por classe e consequentemente por cor.  Mas para além disso, há um movimento de muito potencial que é gerado nos espaços de produção, aqui tem muita violência, mas também há muita iniciativa, há amor nos processos, o que gera muito público, muita gente querendo ver o que se faz. Os casos dos jovens que recebem tinta na cara ao serem flagrados pela polícia, é algo muito visto na Cidade, isso é um caso pessoal.  É pessoal demais ter tantos jovens sendo mortos pela violência, nas noites daqui. Não consigo não ser parte disso.

Delirium – E pra você, quem é Vando?

Andréia – Vando pode ser uma farsa real. 

Delirium – Com essa excelente estreia na direção de curta-metragem que acaba de ganhar dois prêmios na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes (da Crítica e do Canal Brasil), quais são seus próximos planos no campo Cinema?

Andréia – Queria responder: “Ficar rica!” Brincadeira!! Não tenho planos no campo do cinema, acho que tenho planos para algumas ações, que não sei no quê se tornarão. Agora ando pesquisando uma coisa que estou nomeando de “corpo criminoso”; isso se relaciona com minha escrita do mestrado. Partindo desse termo, venho pensando a “Lei”, a “Ética”, a “Ordem”, a “Delinquência”. Estas são algumas palavras que viram enunciados nessa investigação. Não sei onde isso vai parar. Mas tenho trabalhado nisso.

Vando Vulgo Vedita
Cartaz de “Vando Vulgo Vedita”

Escrito por:

120 Textos

Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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