Daria: crítica social em forma de sátira adolescente

Daria: crítica social em forma de sátira adolescente

Com a era de memes virtuais, foram resgatados desenhos antigos que, curiosamente, traziam mensagens ainda atuais. O desenho Daria é um desses resgates e, apesar de ter sido adotado principalmente pelo movimento feminista, consegue ir além desse tema, convergindo em uma crítica constante à sociedade moderna.

A personagem título da animação se originou no desenho Beavis and Butthead (1993-2011), tendo posteriormente ganhado a sua própria serie pelas mãos de Glenn Eichler e Susie Lewis, transmitida pela MTV americana de 1997 a 2002.

Em um primeiro olhar, pensa-se que a série trata dos problemas típicos da adolescência americana, em que “a menina impopular só não é popular porque não quer” ou “galera popular é má com os não populares e receberá o troco no fim”. Esse pensamento é reforçado com a presença dos típicos personagens norte-americanos de comedias românticas adolescentes, como o casal atleta bonito e “burro”. Há, porém, muito mais em Daria do que esse tema colegial recorrente.

Daria
Brittany, Daria e Jane, respectivamente.

A protagonista se mostra uma adolescente cínica e introvertida, estando sempre preparada para responder a qualquer comentário alheio fazendo uso de seu sarcasmo e humor negro. Logo na primeira temporada, entretanto, já se percebe que essa reação é fruto de uma insegurança emocional da personagem. Insegurança esta que está tão enraizada na personalidade de Daria que ela já a trata com naturalidade; o mínimo de segurança de Daria encontra-se no seu status de CDF e, mesmo sendo obviamente culta, sente-se ameaçada com a hipotética possibilidade de perder essa característica.

Daria

A atitude apática de Daria em relação à vida é vista pela personagem como consequência de sua visão realista sobre o mundo, porém pode-se ver que a própria apatia da personagem é causada pela sua (total) falta de expectativa em relação aos outros. Talvez essa descrença no alheio seja fruto de sua insegurança em relação a si mesma, mas se percebe que esse sentimento afetou a protagonista de tal forma que ela deixou de se importar em tentar, sendo isso traduzido em sua própria frase:

“Não possuo baixa auto-estima, apenas baixa estima por todo mundo”.

Essa personalidade introvertida e intelectual de Daria se complementa com a de sua melhor amiga Jane Lane; tendo esta as mesmas características base da protagonista, mas apresentando mais segurança emocional que Daria. Se opõe, entretanto, a de sua irmã Quinn, sendo esta o estereótipo ambulante de garota popular do ensino médio norte-americano.

Daria
“Eu sei que você pode achar isso difícil de acreditar, mas a aparência não é tudo.”

Tanto Daria quanto Jane estão à margem da pequena sociedade escolar em que se centraliza o desenho, por vezes conseguindo apresentar críticas sobre aquele ambiente que se adéqua ao restante da sociedade – inclusive àquela fora do desenho.

Daria é essencialmente uma sátira social, com uma constante preocupação em questionar o que, ainda hoje, é considerado aceitável; algo que logo se nota no que parece ser o único programa televisivo presente no seriado, o Sick Sad World (Triste Mundo Doente, em tradução livre).

Daria

Como exemplo das críticas sociais presentes no desenho, temos um episódio da primeira temporada em que Daria e Jane fazem um pôster expondo uma crítica aos padrões de beleza impostos às mulheres e aos sacríficos que elas fazem para atingi-lo, ao apresentar a figura de uma jovem adolescente bulímica; ninguém além delas, entretanto, parece entender a mensagem presente no pôster, inclusive tentando modifica-lo para apresentar uma mensagem “positiva de alimentação saudável”.

Daria
Jane: “Infelicidade ama companhia.” Daria: “Você não precisa me dizer isso, é a base da nossa amizade.”

É demostrado, ao longo do desenho, como Daria – e Jane – parece estar à frente de seu tempo e é, consequentemente, excluída da comunidade de Lawndale. Ela constantemente questiona – e ironiza – as regras impostas e as atitudes de seus colegas e conhecidos, o que contribui para reforçar o seu status de exclusão.

Mas por que Daria foi adotado pelo movimento feminista?

A personagem título já é apresentada como “fora do padrão”. Apesar de ser branca, e aparentemente de classe média, Daria não tem a aparência física e nem mesmo os pensamentos considerados adequados para uma mulher, o que dirá para uma adolescente. Sabemos, contudo, que não é o fato de se estar “fora dos padrões” que torna alguém feminista e nem o fato de estar nos padrões excluí do movimento.

Daria
“Oi, eu sou Daria. Vá pro inferno.”

A questão sobre Daria é que ela está ali justamente para questionar o que é considerado adequado para uma mulher. Daria é inteligente e por vezes seca, contrastando com as personagens de Quinn e Brittany, o que faz com que ela fuja da obrigação social imposta de que as mulheres devem ser sempre agradáveis e superficiais.

Uma das únicas personagens femininas negras da série, Jodie Landon, apesar de não ser tão recorrente quanto outros, apresenta reflexões tão válidas quanto a de Daria (ou Jane), adicionando o necessário ponto de vista racial. Um acerto dos produtores do desenho foi retratar Jodie como uma mulher complexa e multifacetada com preocupações reais que afligem a mulheres negras – ou não brancas em geral – mundialmente até hoje, não a apresentando com os típicos estereótipos hollywoodianos de “negra zangada”, “melhor amiga negra arretada” ou “negra mágica”.

Daria
“Em casa, eu sou Jodie, posso dizer e fazer qualquer coisa. Mas na escola eu sou a Rainha dos Negros, a adolescente afro-americana perfeita.”

A séria acerta ao apresentar um aspecto da interseccionalidade que deve estar presente no movimento feminista, ao conseguir representar que, embora Daria e Jodie sejam parecidas, elas têm – e continuarão tendo – experiências distintas de vida pelo simples fato do grupo étnico-racial a que pertencem, nem por isso sendo inimigas ou sendo suas respectivas opressões excludentes.

Daria
“Eu estou cansada de ser a extrema minoria e eu não quero ir para um lugar em que as pessoas possam pensar que eu entrei só porque sou afro-americana.”

É com a junção Daria-Jane-Jodie que vemos o viés feminista da série. Enquanto Daria e Jane fazem críticas gerais a sociedade e a como a mesma vê a mulher e o que ela deve ser, Jodie traz um dos aspectos presentes na interseccionalidade – necessária – do movimento, ao colocar em cheque as diferenças de opressão enfrentadas entre mulheres brancas e não brancas, em meio a observações relacionadas a vida em geral.

Daria
“Você sabe que a sua abordagem negativa a tudo é auto-sabotagem, certo?”

Um outro aspecto da interseccionalidade presente na série é a breve discussão sobre imagem corporal presente em um episódio da quinta temporada (Fat Like Me), que apresenta o questionamento do que é um corpo perfeito e como uma pessoa – especialmente uma mulher – é afetada pelo ideal corporal social.

Enquanto acerta ao retratar o feminismo negro de Jodie e a imagem corporal imposta às mulheres, abrangendo-os para a interseccionalidade, o desenho peca ao retratar a diretora da escola de Lawndale (Angela Li) como uma mulher asiática gananciosa e disposta a tudo para conseguir dinheiro. Representação essa que entra em choque direto com a proposta progressista da animação, ao reforçar um antigo estereótipo enfrentado por asiáticos no geral e seus descendentes.

Daria

Também, uma contraposição presente em Daria é a representação da professora Janet Barch ao ambiente feminista que o desenho tenta promover. Ao longo de todo o desenho, a Sta. Barch é retratada como uma (pseudo) odiadora de homens, só deixando de odiá-los nos momentos em que está com o professor O’Neill.

A intenção pode não ter sido esta, mas a representação feita de Janet parece reforçar o retrato ignorante de feministas como odiadoras de homens e mal-amadas, apenas podendo mudar essa “característica” ao estarem nos braços de um homem.

Daria
“Eu gostaria que todos os homens estivessem mortos.”

Além disso, faltam personagens de outras etnias, como indígenas e latinos, assim como personagens deficientes – físicos ou mentais – ou com alguma diversidade de crença, mesmo que esse último não seja retratado na série em nenhum momento. Mesmo assim, a série consegue (geralmente) criticar as regras impostas às pessoas e principalmente às mulheres desde seu primeiro episódio.

Além de seu obvio conteúdo satírico, o desenho se destaca por sua qualidade de roteiro. O traço da animação é simples, similar ao de Beavis and Butthead, porém o roteiro esperto e dinâmico consegue prender o telespectador. Durante as cinco temporadas e dois filmes, os personagens conseguiram se manter fieis a suas construções, de forma que mesmo com seus respectivos amadurecimentos, suas essências não se perderam; salvo com uma pequena questão presente no arco principal da quinta temporada do desenho, que foi logo consertado em sua season finale.

Daria
“As pessoas deveriam me aceitar por quem eu sou, sem que eu precisasse mudar.”

Daria é, portanto, um excelente exemplo de desenho que conseguiu combinar uma crítica à sociedade – que continua pertinente mais de 15 anos após seu fim – com um roteiro que promove um entretenimento ao seu público, sendo uma forma de ampliar a visão social de seu telespectador frente à conjuntura atual da sociedade mundial.

Ação Nerd Feminista

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