Como o feminismo se tornou servo do capitalismo – e como reconquistá-lo

Como o feminismo se tornou servo do capitalismo – e como reconquistá-lo

Por Nancy Fraser*

Como feminista, eu sempre pensei que ao lutar pela emancipação das mulheres eu estava construindo um mundo melhor – mais igualitário, justo e livre. Mas ultimamente eu comecei a me preocupar, pois os ideais pregados pelas feministas têm servido para diferentes fins. Preocupo-me, especificamente, que a nossa crítica ao sexismo está agora fornecendo a justificativa para novas formas de desigualdade e exploração.

Em uma guinada cruel do destino, temo que o movimento pela libertação das mulheres tenha se envolvido em um perigoso elo com os esforços neoliberais para construir uma sociedade de livre mercado. Isso explicaria como ideais feministas que antes faziam parte de uma visão de mundo radical estão cada vez mais sendo usados em termos individualistas. Onde antes as feministas criticavam uma sociedade baseada em carreirismo, agora elas dão conselhos sobre “fazer acontecer” (NT: o conceito, “lean in” em inglês, veio do livro de mesmo nome lançado por Sheryl Sandberg, alta executiva do Facebook, onde ela aborda questões de gênero no trabalho e inspira mulheres a crescerem em suas carreiras às mais altas posições, geralmente ocupadas por homens). Um movimento que antes priorizou a solidariedade social, agora celebra empresárias femininas. Uma perspectiva que antes priorizava “cuidado” e interdependência agora encoraja avanços individuais e a meritocracia.

O que se encontra por trás dessa modificação é a completa mudança na característica do capitalismo. O capitalismo gerido pelo Estado na era pós-Guerra deu lugar a uma nova forma de capitalismo – “desorganizado”, globalizado, neoliberal. A segunda onda do feminismo surgiu como uma crítica ao primeiro, mas se tornou serva do segundo tipo de capitalismo.

Com o benefício da retrospectiva, agora podemos ver que o movimento pela libertação das mulheres apontava simultaneamente dois futuros possíveis. Em um primeiro cenário, ele pré-configurou um mundo em que a emancipação de gênero andava de mãos dadas com a democracia participativa e a solidariedade social; em um segundo, ele prometia uma nova forma de liberalismo, capaz de garantir às mulheres, assim como aos homens, os benefícios da autonomia individualista, aumento de escolhas e avanço através da meritocracia. A segunda onda do feminismo era, nesse sentido, ambivalente. Compatível com duas visões de mundo, ela era suscetível a duas diferentes elaborações históricas.

Nancy Fraser
A filósofa marxista e feminista Nancy Fraser, autora do artigo

Como vejo, a ambivalência do Feminismo se desenvolveu em anos recentes a favor do segundo cenário – liberal e individualista – Mas não porque fomos vítimas da sedução neoliberal. Pelo contrário, nós mesmas contribuímos com três importantes ideias para essa evolução.

Uma contribuição foi a nossa crítica em relação à renda familiar: a ideia de uma família com chefe de família masculino/dona de casa feminina era central no capitalismo regulado pelo Estado. A crítica feminista a esse conceito agora serve para legitimar o “capitalismo flexível”. Portanto, essa forma de capitalismo depende muito do trabalho remunerado da mulher, especialmente trabalhos mal pagos, em prestação de serviços e fábricas, feito não somente por jovens mulheres solteiras, mas por mulheres casadas e mulheres com crianças; não só por mulheres em função de sua raça, mas por mulheres de praticamente todas as nacionalidades e etnias. Como as mulheres estão presentes no mercado de trabalho por todo o globo, o ideal de capitalismo organizado pelo Estado em relação à renda familiar está sendo substituído por uma nova e mais moderna norma – aparentemente sancionada pelo feminismo – a da família com dois assalariados.

Não importa que a realidade que subjaz a esse novo ideal trata de menores níveis salariais, diminuição na segurança do trabalho, declinação do padrão de vida, um íngreme aumento no número de horas trabalhadas, um abuso dos turnos duplos – agora, geralmente, turnos triplos ou quádruplos – e um aumento na pobreza, cada vez mais concentrada em famílias chefiadas por mulheres. O neoliberalismo torna isso, algo grave, em uma coisa suave, envolto em uma narrativa de empoderamento feminino. Invocando a crítica feminista à renda familiar para justificar a exploração, ele usa o sonho das mulheres pela emancipação para alimentar a acumulação de capital.

Hello, My Twenties
Você deveria ser uma mulher independente do século XXI” (cena do dorama Hello, My Twenties)

O Feminismo fez também uma segunda contribuição ao ethos neoliberal. Na era do Capitalismo controlado pelo Estado, nós certamente criticamos uma visão política constrita, que estava tão focada na desigualdade de classes que não pôde ver injustiças “não-econômicas” como violência doméstica, assédio sexual e opressão reprodutiva. Rejeitando o “econômico” e tornando político o “pessoal”, feministas ampliaram a agenda política para desafiar o status que as hierarquias pressupunham na construção cultural da diferença de gêneros.  

O resultado deveria ter sido uma expansão na luta por justiça, para abarcar tanto cultura quanto economia. Mas o resultado atual foi um foco unilateral em “identidade de gênero”, aos custos de problemas econômicos básicos. Pior ainda, a guinada feminista para políticas identitárias se aproximou demais com um neoliberalismo em ascensão que queria nada mais que reprimir todo pensamento sobre igualdade social. Portanto, nós focamos na crítica cultural do sexismo precisamente no momento em que as circunstâncias requeriam uma atenção redobrada na crítica da política econômica.

Por fim, o feminismo contribuiu com uma terceira ideia ao neoliberalismo: a crítica ao paternalismo do Estado assistencialista. Inegavelmente progressista na era do Capitalismo Controlado pelo Estado, essa crítica convergiu com a guerra neoliberalista ao “Estado Babá” e sua mais recente aceitação cínica de ONGs. Um exemplo é o “microcrédito”, o programa de pequenos empréstimos bancários para mulheres pobres do hemisfério sul.

Propagandeado como uma alternativa empoderadora e de baixo para cima, em relação à complexa burocracia de projetos estatais, o microcrédito é promovido como um antídoto feminista para a pobreza e submissão das mulheres. O que não foi notado, contudo, é uma coincidência perturbadora: o microcrédito tem crescido tanto quanto o Estado tem abandonado esforços macro-estruturais para combater a pobreza, esforços que pequenos empréstimos não podem substituir. Nesse caso também, então, a ideia feminista foi aproveitada pelo neoliberalismo. Uma perspectiva que focava originalmente na democratização do poder estatal com a finalidade de empoderar cidadãos é agora usada para legitimar o marketing e retração estatal.

Em todos esses casos, a ambivalência do feminismo tem estado ao lado do indivíduo (neo)liberal. Mas o outro cenário, solidário, ainda pode estar vivo. A crise atual nos dá a chance para resgatar este tópico mais uma vez, reconectando o sonho da libertação feminina coma visão de uma sociedade solidária. Para esse fim, feministas precisam quebrar nosso perigoso elo com o neoliberalismo e reaver nossas três “contribuições” para nossos próprios fins.

Primeiro, temos que interromper essa perigosa ligação entre nossa crítica da renda familiar e o capitalismo flexível, militando por uma forma de vida que decentralize o trabalho remunerado e valorize atividades não remuneradas, incluindo – mas não somente – o trabalho doméstico. Em segundo, devemos interromper a transformação de nossa crítica ao economicismo em políticas identitárias, integrando a luta pela transformação de um status de ordem baseada na cultura de valores machistas com a luta por justiça econômica. Finalmente, devemos cortar o falso vínculo entre nossa crítica da burocracia e do fundamentalismo do livre-mercado, reivindicando a bandeira da democracia participativa como um meio de fortalecer os poderes públicos necessários para restringir o capital, pelo bem da justiça.

*Nancy Fraser é uma importante filósofa feminista. Artigo original publicado pelo The Guardian.

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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