[LIVROS] Leia Mulheres: A lírica da dor em Florbela Espanca

[LIVROS] Leia Mulheres: A lírica da dor em Florbela Espanca

Florbela Espanca é, sem dúvidas, um dos maiores nomes da poesia portuguesa, mesmo tendo seu brilho ofuscado por Pessoa e Camões, poetas tão mais cultuados que a poetisa em questão. Nascida em 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, Alentejo, Florbela cresce em um ambiente que, por excelência,  já foge ao comum e ao corriqueiro de sua época: ao ter a esterilidade constatada, a mãe, Mariana do Carmo Ingleza, permite que o pai tenha uma filha fora do casamento, assiste o parto de Antonia Conceição Lobo e vê Flor Bela Lobo vir ao mundo. Mariana torna-se, então, madrinha da poetisa e de seu irmão, também filho de Antonia, Apeles.

Começou a escrever poemas ainda no período escolar e foi uma das poucas mulheres a adentrarem o Liceu Masculino, em Évora. Lia clássicos de autores portugueses e também se aventurava nas obras de escritores como Alexandre Dumas e Balzac. A vida amorosa de Florbela Espanca foi demasiadamente agitada. Em 1912, fica noiva de Alberto de Jesus Silva Moutinho, mas logo passa a se corresponder com o pseudônimo “José”, pelo qual deixa o noivo. Pouco depois rompe com seu correspondente e volta para Alberto, casando-se em 1913. Em 1916 começa a organizar seu primeiro livro de poesias, intitulado Trocando Olhares.

Com a ajuda de Júlia Alves, uma amiga que se correspondia com Florbela Espanca por cartas e grande apreciadora de sua obra, a poetisa passa a se dedicar ainda mais à escrita, vindo a publicar em jornais e revistas para o público feminino. Raul Proença foi uma influência positiva, mas muito mais negativa na vida de Florbela: o crítico ajudou-a a escapar de alguns erros cometidos em suas poesias iniciais e via nela muito futuro, mas por ter sido duro em suas palavras, acaba deixando Florbela Espanca em profunda tristeza, o que acarreta nela um nível grave de depressão, posteriormente.

Florbela se divorcia de Alberto, conhece Antonio Guimarães em 1920, e com ele se casa. Logo após o casamento, a autora conhece o médico Mário Lage e ele e o marido de Florbela se desentendem, o que culmina no segundo divórcio dela. Apaixonada por Mário, Florbela contraria a família e vai morar com ele em sua casa. A família do médico não aprova o relacionamento e os desentendimentos agravam cada vez mais a saúde de Florbela Espanca, que já estava muito debilitada por conta de dois abortos espontâneos.

   Florbela Espanca

Apeles, seu irmão querido, morre em um acidente de avião em 1927 e tira o resto da alegria de viver de Florbela. O casamento com Mário abala-se e, em seu último ano de vida, escreve Diário, relatos de sua vida que são postumamente publicados sob o título Diário do Último Ano. Por meio deste documento histórico, a poetisa procurou deixar claro seus mais íntimos sentimentos, principalmente o descontentamento com uma época em que a mulher era vista como submissa e mal vista se tentava ser feliz tomando atitudes que só cabiam a ela, como casar e se divorciar de diversos homens:

“(…) É o casamento um grilhão de flores e risos? De acordo, mas é sempre um grilhão. Ria, pois, e cante com a sua bela alegria, ame doidamente alguém, mas nunca abdique nem uma só das suas graças, nem uma só das suas ideias que lhe fazem vincar a fronte às vezes com uma pequenina ruga de capricho e insolência que fica tão bem às mulheres bonitas; não ajoelhe nunca, porque está nisso o nosso grande mal, o nosso profundíssimo erro.” (Zina C. Bellodi, org. Florbela Espanca, pág. 14)

Florbela Espanca defendia pautas feministas em uma época em que a mulher portuguesa (e de todo o mundo) era constantemente silenciada. Afirmava não ter jeito para o lar, mas era mãe, costureira e amante fiel das palavras. Grávida de versos tão magníficos, Florbela deixou um legado saudoso que tanto cantou as saudades e as dores de apenas existir em um mundo que, constantemente, a colocava a contestar seu propósito em meio aos dias:

(…) Eu não sou, em muitas coisas, nada mulher; pouco de feminino tenho em quase todas as distrações da minha vida. Todas as ninharias pueris em que as mulheres se comprazem, toda a fina gentileza duns trabalhos em seda e oiro, as rendas, os bordados, a pintura, tudo isso que eu admiro e adoro em todas as mãos de mulher, não se dão bem nas minhas apenas talhadas para folhear livros que são verdadeiramente os meus mais queridos amigos e os meus inseparáveis companheiros. (Zina C. Bellodi, org. Florbela Espanca, pág. 14)

A morte de Florbela Espanca, em 8 de dezembro de 1930, aos 36 anos, segue sendo investigada por muitos estudiosos. O atestado de óbito confirma ter sido uma neurose agravada por todos os episódios negativos que ocorreram em sua vida, mas alguns creem ter se tratado de suicídio. Mesmo após a morte, Florbela ainda foi atormentada pelos homens que tanto devotara seu amor em vida; o pai, dezenove anos após o falecimento da filha, decide finalmente registrá-la em seu nome, para que assim os direitos autorais de suas obras fossem para ele.

A poesia de Espanca é reflexo direto de seus dias de dor, vazio e questionamento, dor esta grafada em letra maiúscula, personificada, vívida. Muito de autorreflexão é colocado em seus versos, bem como a necessidade de se autoafirmar e encontrar um porquê em sua existência. O medo da morte e do ato de amar também são temas recorrentes, sendo este último arrebatador. Não raro a leitora encontra poemas de entrega total, no qual o eu lírico anula o próprio ser para viver em função da criatura amada, fato que contraria o que foi citado por Florbela Espanca em seu Diário. À primeira vista, os poemas podem ser interpretados como recortes de submissão, quando na verdade são peças recorrentes na vida de uma mulher que teve inúmeras escolhas, sendo uma delas poder amar quem bem entendesse incondicionalmente.

Florbela Espanca

A MINHA DOR

(A Você)

A minha Dor é um convento ideal

Cheio de claustros, sombras, arcarias,

Aonde a pedra em convulsões sombrias

Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres d’agonias

Ao gemer, comovidos, o seu mal…

E todos têm sons de funeral.

Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios

Dum roxo macerado de martírios,

Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,

Noites e dias rezo e grito e choro,

E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém…

FANATISMO

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida,

Meus olhos andam cegos de te ver!

Não és sequer a razão do meu viver,

Pois que tu és já toda a minha vida!

Não veja nada assim enlouquecida…

Passo no mundo, meu Amor, a ler

No misterioso livro do teu ser

A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”

Quando me dizem isto, toda graça

Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:

“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,

Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…”

A MULHER

I

Um ente de paixão e sacrifício,

De sofrimento cheio, eis a mulher!

Esmaga o coração dentro do peito,

E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes

Na luta; sê em Vênus sempre Marte;

Sempre o mundo é vil e infame e os homens

Se te sentem gemer hão de pisar-te!

Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,

Essa brancura ideal de puro arminho

Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então os vis: “olhem, vejam

É aquela a infame!” e apedrejam

A pobrezita, a triste, a desgraçada!

EU

Até agora eu não me conhecia,

Julgava que era EU e eu não era

Aquela que em meus versos descrevera

Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia

E, mesmo que o soubesse, o não dissera…

Olhos fitos em rútila quimera

Andava atrás de mim… E não me via!

Andava a procurar-me – pobre louca! –

E achei o meu olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

É a chamada da tua alma a embrasear

As apagadas cinzas da minha alma!

De sua autoria, encontra-se Livro das Mágoas (1919), Livro de “Sóror Saudade” (1923), Charneca em Flor (1931, obra póstuma), Reliquiae (1931, obra póstuma), Trocando Olhares (1915 – 1917) e Esparsa Seleta (1917 – 1930).

Florbela Espanca

Florbela Espanca – Coleção Melhores Poemas

Global Editora

189 páginas

Ano: 2005

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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