O Papel de Parede Amarelo: O arquétipo da mulher insana

O Papel de Parede Amarelo: O arquétipo da mulher insana

O Papel de Parede Amarelo“, publicado por Charlotte Perkins Gilman, em 1892, poderia ser apenas mais um conto de terror psicológico existente na literatura, se não fosse a carga de importância extrema que tanto ele quanto sua autora possuem dentro do feminismo: escrito de forma metafórica, o texto vale-se de fatores autobiográficos para contar as dificuldades sofridas por Charlotte desde o nascimento, sob a visão de uma personagem tida como histérica pelo marido machista.

Nascida em Connecticut (1860), Charlotte foi vítima do machismo e viu seu mundo desmoronar ainda muito pequena. A mãe, que teve quatro filhos, perdeu um deles ainda na infância, fazendo com que o pai viesse a abandonar a família. Muito perturbada com a saída do marido de casa, a mãe da autora passou por sérias crises depressivas e isso acabou refletindo na criação de seus filhos: por medo de uma nova traição, ela sequer cogitava a ideia de se envolver com outro homem e também negava carinho e atenção às crianças.

Charlotte cresceu rodeada de silêncios e privações emocionais, tornou-se uma jovem reclusa e muito interessada em ciências e literatura, e isso fez com que se tomasse gosto pela escrita ainda na adolescência. Foi nesta idade que teve seu primeiro contato com literaturas feministas, que visavam discorrer acerca do papel feminino dentro da economia e do casamento e, assim, formou sua opinião em prol das mulheres que, como ela e a mãe, eram vítimas de uma sociedade patriarcal e opressora.

Charlotte Perkins Gilman
Charlotte Perkins Gilman. Imagem: reprodução

Conheceu o artista Charles Stetson e, descobrindo algumas afinidades, decidiram iniciar um relacionamento. A ideia de casar-se com ele foi questionada com receio por Charlotte, mas acabou o fazendo e tendo uma filha. A questão do matrimônio e todo o trabalho que a ele investia foi cansando e deprimindo a autora, que teve de abdicar muitas vezes de seus estudos e escritos. Dizia ela sentir que algo iria dar errado desde o começo, como se uma nuvem cinza pairasse sobre ela e fosse se intensificando, à medida que a relação tomava passos mais sérios.

Foi internada em uma clínica para tratar do quadro de suposta histeria. O médico inferiu-lhe um tratamento infantilizado e extremamente patriarcal, receitando que Charlotte voltasse para casa e se dedicasse apenas à filha e ao cuidado do lar. Recomendou, ainda, que ela nunca mais voltasse a tocar numa caneta, lápis ou pincel enquanto vivesse. Foi então que a angústia da autora piorou e, ao voltar do sanatório, passou a rastejar pelos cômodos da casa, tendo claramente seu quadro de depressão agravado.

Três anos após o episódio, Charles e ela concordaram em dar início ao processo de divórcio. Ao sair de casa, Charlotte voltou a respirar e a acalmar a mente, dedicando-se aos seus projetos como outrora fizera. O ex-marido casou com uma amiga dela e Charlotte cedeu a guarda de sua filha para que o casal cuidasse, ato que fez com que a sociedade não poupasse críticas e a condenasse ainda mais, já que era constantemente hostilizada pelo seu posicionamento quanto à militância feminista.

Charlotte Perkins Gilman em protesto feminista
Charlotte Perkins Gilman em protesto feminista.Imagem: reprodução

Após o divórcio, tornou-se professora, continuou sendo palestrante e escreveu “O Papel de Parede Amarelo“, texto que cada dia mais ganha notoriedade no meio feminista. A personagem criada por Charlotte para representar suas próprias experiências aterradoras começa o conto, escrito em formato de diário, narrando que o marido John, um médico, a diagnosticou com um caso de histeria, aparentemente surgida do nada e, como tratamento, decidiu mudar com a esposa para uma casa de campo extremamente isolada de qualquer contato com o mundo exterior.

Assim que chega à casa, a mulher sente que existe algo estranho, uma força maior e negativa pairando sobre o lugar. Ao comentar com o marido, este não faz mais do que rir e chamá-la de “tolinha”. Nota-se claramente o poder de influência que John possui sobre a narradora. Ela não pode dar um passo sem sua anuência, não pode questioná-lo acerca de sua “doença” (afinal, é médico e possuidor da verdade absoluta) e até mesmo o quarto no qual se instalam é escolhido por ele: um quarto infantil, cuja única janela é cercada por grades, mobiliado apenas por uma cama grande e pesada e decorado com um papel de parede amarelo que chama a atenção da mulher logo de cara.

“John ri de mim, é claro, mas isso é de se esperar no casamento. John é prático ao extremo. Não tem paciência para questões de fé, nutre um imenso horror à superstição e zomba abertamente de qualquer conversa sobre coisas que não podem ser vistas nem sentidas nem traduzidas em números.”

O Papel de Parede Amarelo; GILMAN, Charlotte Perkins, p. 12

Aos poucos a personagem observa coisas estranhas no padrão dos desenhos do papel. Chega a ver fungos, como cogumelos brotando pelas paredes e, o mais assustador, vê características humanas em um local que outrora parecia vazio. Ao saber que não pode contar tais visões para alguém, já que ninguém acreditaria nela, resolve relatar tudo em seu diário, que precisa esconder entre um capítulo e outro, quando percebe alguma movimentação próxima ao quarto. Eis um fator que corrobora o que foi vivido por Charlote em sua internação tão dolorida: o afastamento total do que lhe dava prazer, a escrita.

Papel de Parede Amarelo

É esmaecido o bastante para confundir o olho que o segue, intenso o bastante para o tempo todo irritar e incitar seu exame, e, quando seguimos por um tempo suas curvas imperfeitas e duvidosas, elas de súbito cometem suicídio – afundam-se em contradições inconcebíveis.

O Papel de Parede Amarelo, GILMAN, Charlotte Perkins, p. 17)

O excerto acima, retirado do primeiro olhar aprofundado que a personagem faz acerca do papel de parede, é puramente como a sociedade enxerga as mulheres que fogem às doutrinas e às imposições a elas infligidas. “Curvas imperfeitas e duvidosas”, fugitivas de um padrão determinado e intransponível e que, ao final, culminam em contradições que às colocam à beira de um suicídio social: a morte do próprio “eu” pelo patriarcado.

O papel de parede vai rapidamente mostrando-se à mulher, que encontra em sua investigação o único entretenimento capaz de tirá-la do marasmo que sua vida se tornara. Em uma hora começa a enxergar olhos saltados e pescoços quebrados e, mais para frente na narrativa, identifica se tratar de uma mulher. Uma mulher presa atrás dos padrões, assim como ela, que rasteja em sua suposta insanidade, em busca de libertação.

A narradora de “O Papel de Parede Amarelo” alega muitas vezes enxergar mais mulheres juntas à principal e, para libertá-las, decide rasgar de vez o padrão do papel de parede, indo de fora à fora das paredes do quarto. Neste ponto da narrativa, já ao final do conto, a mulher se coloca como a própria mulher que rasteja, o que pode fazer com que a leitora se confunda acerca da veracidade das supostas alucinações, mas não se enganem: todas as mulheres, oprimidas, machucadas, mortas tanto literalmente, quanto psicologicamente, são a própria narradora e todas as atrocidades às quais fora submetida. O conto termina com John entrando no quarto e observando a mulher que, rastejando, encontra finalmente sua liberdade, porém sob um viés animalesco, única visão relacionada às mulheres que iam de encontro à sociedade patriarcal, assim como Charlotte.

O texto de Gilman é fluído e as frases curtas passam à leitora a angústia e o medo da personagem de ser pega confessando ao diário, único ouvinte, os episódios que vinham ocorrendo na casa. Cada capítulo é curtíssimo e escrito em espaços de tempo não muito longos, apenas quando a narradora não está sedada ou sob o olhar cruel de John. A influência de sua vida na obra é tão forte, podendo a leitora perceber quão prejudicial para ela foi o casamento/gravidez/internação, que o médico do sanatório em que esteve foi transformado em personagem, o Dr. S. Weir Mitchell, amigo de John e colaborador para o atestado de histeria da personagem.

Não raro na sociedade, a mulher é chamada de “louca”. Seja pelo término de um relacionamento, tornando-se a “ex-namorada louca de alguém”, tentando uma carreira vista como “masculina”, vestindo-se do jeito que mais lhe agrada ou denunciando um abuso sofrido, sempre haverá alguém apontando um indicador acusador e duvidando de sua posição e sanidade. A literatura-denúncia de Charlotte borbulha, incomoda, deprime e revela o que está dentro de todas as mulheres: o sofrimento pela desconfiança, maus tratos e falta de apoio de outras pessoas.

O Papel de Parede Amarelo” não foi a única obra notória de Charlotte. Em “Mulheres e a Economia“, a autora criticou abertamente o sistema econômico que colocava as mulheres em posições submissas e humilhantes. Com opiniões marcantes quanto ao sistema patriarcal, Gilman comparou o tratamento dado às mulheres dentro do casamento com o mesmo dado aos animais rurais (o que, infelizmente, ainda está muito vivo no século XXI):

“O trabalho das mulheres dentro de casa sem dúvida permite aos homens produzir mais riqueza do que normalmente conseguiriam; e desta forma as mulheres têm papel econômico ativo na sociedade. Mas o mesmo vale para os cavalos. O trabalho dos cavalos permite aos homens produzir mais riqueza do que normalmente conseguiriam. Os cavalos têm papel econômico ativo na sociedade, mas não têm independência financeira, assim como as mulheres.”

Women and Economics; GILMAN, Charlotte Perkins, p. 13

No fim da vida, e após muitos feitos inesquecíveis pela luta feminista, Charlotte descobriu um câncer de mama. Para tanto, viu no suicídio por clorofórmio sua última decisão autêntica. Sem ordens ou imposições de homem algum, morreu em 1935, mas continua rasgando os padrões aos quais diversas mulheres são submetidas até hoje, por meio de sua arte tão influenciadora.


O Papel de Parede AmareloO Papel de Parede Amarelo

Editora José Olympio / Grupo Editoral Record

Ano: 2016

110 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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