[SÉRIE] Cara Gente Branca: A quebra do mito da inclusão racial

[SÉRIE] Cara Gente Branca: A quebra do mito da inclusão racial

Cara Gente Branca, esperada adaptação do filme de 2014 de mesmo nome estreou nessa última sexta-feira na Netflix e nossa, ainda estamos nos recuperando. Baseada no livro e no referente roteiro que deu origem ao filme homônimo de 2014, Dear White People/ Cara Gente Branca, a série de 10 capítulos de menos de meia hora nos deixa atordoadas, mas no bom sentido.

Iniciando-se bem mais ou menos onde o filme termina, já de prima estabelecendo um link com o antecessor, como se já não fosse evidente, a série já começa sua rica narrativa com uma importante questão: o blackface.

Cara Gente Branca

Para aqueles que ainda (como?) não sabem, o blackface é a prática de fazer uso de estereótipos racistas de pessoas negras com o objetivo de fazer humor, este considerado jocoso justamente por ridicularizar a comunidade negra com aspectos culturais da própria ou mesmo inventados por aqueles que detém o poder. Na situação em questão, a pratica do blackface é a típica “pintura do rosto branco com tinta preta/marrom e uso de roupas/acessórios específicos, além de trejeitos, para depreciar a raça/etnia”. Apesar de causar uma certa surpresa aos alunos do campo da Universidade Winchester, tal pratica já não nos causa, infelizmente (?), a mesma surpresa ao acontecer no mundo não fictício.

Cara Gente Branca
Bloco de rua do carnaval de Juiz de Fora “As Domésticas de Luxo”
Cara Gente Branca
Robert Downey Jr. em Trovão Tropical: em nenhum momento foi dito no filme como aquilo era racista, ao contrário, foi mostrado com humor e de forma a criar empatia com o espectador
Cara Gente Branca
A blogueira Kéfera de blackface e por que “mulheres não oprimem mulheres”

Não apenas o racismo explicito é tratado na série, mas também aqueles sutis e igualmente tóxicos, como a masculinidade extrema a que os homens negros estão subjugados, a hipersexualização do corpo negro e a mínima representação racial presente na grande mídia.

Cara Gente Branca
“Deve doer mesmo só ter dois filmes esse mês com pessoas que parecem com você.”

Esse último tópico, porém, é majoritariamente bem tratado pelo elenco da série, já que ela é majoritariamente composta por pessoas negras. E, apesar de se tratar de uma narrativa com foco no ponto de vista negro, mais do que de outras minorias, ainda consegue apresentar questionamentos importantes destas, como a quase inexistente representação da população asiática – e todas as suas intradiversidades – na mídia ocidental, sendo esta até menor que a negra, em termos quantitativos e não qualitativos.

Cara Gente Branca

E mais, a masculinidade tóxica do homem negro se faz presente não apenas nas críticas dirigidas e apresentadas pelos personagens negros heterossexuais da série, mas especialmente aos homossexuais – subgrupo da comunidade negra que é duplamente excluído no caso não apenas de ser gay, mas também ao não estarem de acordo com o padrão de comportamento heteronormativo para aqueles que nascem com o sexo masculino. Além daquela já velha conhecida masculinidade latina que é questionada, e satirizada, pelo único personagem latino e gay da série.

Curiosamente, os referentes grupos “étnicos” buscam sempre a companhia dos seus, característica que é mostrada na série, e refletida na vida real, trazendo um aspecto verdadeiro de multiculturalismo, mas que não promove ou se dispõe a apresentar um diálogo entre os povos.

Apenas uma rápida olhada no trailer evidencia a falta de pessoas gordas ou portadoras de alguma deficiência na narrativa. Na verdade, a única cena em que uma pessoa em uma cadeira de rodas apareceu foi justamente uma em que a faculdade era criticada por sua falsa inclusão social. Sabemos muito bem que a verdadeira diversidade é aquela que abrange a todas as minorias marginalizadas e é apenas através dela que poderemos ter uma real interculturalidade de diálogos e de representações, coisa que é, apesar da grande representação negra, omissa na série.

Cara Gente Branca

Diversas outras questões particulares da negritude, e especialmente da mulher negra, como sua compulsória solidão e preterimento constante por aquelas que mais se aproximam do ideal europeu de beleza, são alcançadas na série. Isso, é claro, além da violência policial que atinge a população negra mundialmente, síntese do racismo estrutural que vivenciamos e participamos ativamente – como juízes ou réus – no dia a dia.

Ao longo dos 10 capítulos, vemos a luta que a população negra deve enfrentar diariamente, inclusive não podendo se permitir sentir raiva pela morte constante de seus membros, tanto por medo de retaliação legal quanto por negação em confirmar os estereótipos de bestialidade que enfrentam desde seu nascimento.

Cara Gente Branca

Diferentemente do que foi feito no filme de 2014, que resenhamos aqui, a direção abandona a tentativa de imparcialidade no conflito e adota uma política de crítica satírica das situações ocorridas com os personagens, deixando claro sua posição de aliada, e até de participante, da comunidade negra.

Com isso, somos constantemente ensinados sobre a experiência desses personagens – seja em episódios individuais ou em diálogos comuns – parecendo, até, que as falas dos alunos de Winchester certas vezes se dirigem diretamente a nós, espectadores, uma tática notável de chamar nossa atenção e de apresentar uma proposta de diálogo não apenas entre a série e quem assiste, mas entre quem assiste e seu próprio mundo. Nesse aspecto sendo abordados, ainda mais além do que já foi falado acima, questões de relações interraciais, de colorismo, privilégio branco, falsa aliança entre povos, falta (ou incapacidade?) de empatia de grupos majoritários, apreciação da própria identidade e o desejo de pertencimento total contraposto com a necessidade de autopreservação do povo negro.

Cara Gente Branca
“Nós temos essa verdade para ser evidente. De que todos os homens são criados iguais, a não ser que você fale alto e seja negro e tenha uma opinião.”

Esperamos que a série não passe despercebida como o filme, e apesar de ela talvez não ser tão falada como 13 Reasons Why, mesmo tratando de um assunto tão urgente quanto, temos certeza de que aqueles que se proporem a assisti-la, mesmo que poucos, não sairão os mesmos. Nós com certeza não saímos.

A questão do feminismo (negro), apesar de não ser explicitada na série, é evidente, sendo ela visível na relação que as personagens principais têm entre si, assim como no cuidado que apresentam ter com os aspectos ligados ao gênero dentro da questão racial, como a já citada solidão da mulher negra – sendo ela majoritariamente preterida por mulheres brancas – e o colorismo enfrentado por negras de pele mais escura, preteridas por negras de pele mais clara – leia-se: mais próximas do ideal de beleza eurocentrado. Essa questão – junto com a grande representatividade feminina na série – faz com que Cara Gente Branca consiga passar com louvores pelo Teste Bechdel, adicionando, através disso, uma discussão mais inclusiva não apenas de raça, mas de gênero.

Cara Gente Branca
“Beleza é dor.”

Uma série que mais se aproxima da perfeição em termos de narrativa, filmagem, figurino, representação e voz feminina, não pode deixar de ser assistida, discutida e amada como exemplo não apenas do que a nossa sociedade real é, mas como possibilidade de diálogo sobre estes problemas que se repetem insistentemente ao redor do mundo e em todas as comunidades nacionais por um sistema que se alimenta da desigualdade racial, tanto quanto de outras.

“Um sistema que exige perfeição (de pessoas de cor) em troca de igualdade, é insuportável e inútil. ”

A série consegue se aprofundar ainda mais no assunto de racismo estrutural tratado no filme e faz isso de uma forma didática e, arriscamos dizer, óbvia o bastante para qualquer um entender, menos, é claro, aqueles que não quiserem.

Cara Gente Branca
Brancos mudando o foco de um protesto contra a violência policial

É curioso que apesar de tudo isso, a série ainda consegue nos arrancar boas risadas dentre os questionamentos propostos, fazendo-o de tal forma que torna-se até mais fácil de se conectar com os personagens e de entendermos seus pontos de vista de marginalização compulsória, especialmente por serem culpados erroneamente por isso.

Cara Gente Branca

Assistir à Cara Gente Branca é um aprendizado para aqueles destinatários da mensagem – leia-se pessoas brancas – e um lugar de aceitação para seus remetentes, onde seus problemas, medos e questões gerais são alcançados de uma maneira não estereotipada, mas sim acolhedora. Uma história que precisa ser contada e talvez, através dela, alcancemos um novo nível desse dialogo intercultural, pensando em soluções para os conflitos existentes há mais de 400 anos.

Selo de aprovação do Teste de Bechdel

https://www.youtube.com/watch?v=0JYNCLcYVWk


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