Paulina Chiziane: “Não vou responder o que é literatura feminina”

Paulina Chiziane: “Não vou responder o que é literatura feminina”

“Vim de longe, mas também vim de muito perto”. É assim que a escritora moçambicana Paulina Chiziane inicia sua palestra em Curitiba, capital do Paraná, numa sexta-feira fria do mês de maio. A ilustre presença não poderia ser mais emblemática: Paulina Chiziane, uma mulher negra que lutou pela independência de seu país do domínio colonial português, esteve na capital mais negra do sul do país, mas que ainda nega a importância e contribuição de negros e negras para sua história.

A visita também é simbólica por ser em maio, mês em que se comemora a libertação formal dos escravizados pela princesa Isabel, em 1888, numa cidade que se nega a transformar em feriado a data de 20 de novembro, escolhida para celebrar o dia da consciência negra.

Para uma plateia majoritariamente negra, especialmente de mulheres negras, algo ainda raro nas universidades públicas brasileiras, Paulina Chiziane discorreu sobre literatura, mulheres, racismo, religião, sororidade, colonialismo, o processo de escrever e contar histórias e a histórica ligação entre o continente africano e o Brasil, marcada por opressões e resistências. De voz calma, riso contagiante e uma presença marcante, Paulina Chiziane foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, ainda nos anos 90, mas não se considera uma romancista, e sim uma contadora de histórias, e não se sente menor por esse título que ela mesma lhe deu.

Explica-se: em muitas entrevistas, e também durante a palestra, Paulina Chiziane explica que não gosta de rótulos porque não quer dar explicações a ninguém, nem seguir regras, nem dar justificativas sobre por que trabalha assim ou assado, por que escreve desta ou daquela maneira. Assim sendo, por não seguir a tradição dos cânones, sente-se livre. Além disso, diz honrar a tradição da historicidade oral que marca a produção de relatos de seu povo, em especial das mulheres, em um país ainda marcado pela dificuldade de acesso à educação formal e aos livros.

As precursoras

Já de saída, Paulina diz: “não vou responder o que é literatura feminina”. No entanto, dá vislumbres do que pensa sobre o tema. Cita os homens que sempre escreveram sobre as mulheres de seu ponto de vista, criando uma ideia androcêntrica do que é ser mulher. Menciona o exemplo dos que adoram desnudar as mulheres em seus escritos e poemas.

O homem, quando descreve a mulher na Literatura, desnuda essa mulher. Mas eu, quando saio na rua, preciso me vestir, eu me escondo”, conta Pauline, descrevendo como pode haver um verdadeiro abismo entre a visão de homens (projetada sobre as mulheres) e a de mulheres (que vivenciam essa realidade de fato) sobre a experiência feminina.

Entre as que a inspiraram, cita a poeta portuguesa Glória de Sant’Anna, que viveu 23 anos em Moçambique, de etnia branca, vista como uma precursora. Posteriormente, diz, surgem mulheres que ela denomina “mestiças” (o movimento negro, no Brasil, problematiza essa palavra), como Lília Momplé e Noêmia de Sousa, até que surge ela própria, uma mulher negra de pele escura. No Brasil, cita Carolina Maria de Jesus, cuja obra ainda é alvo de desmerecimento, considerada tudo, menos Literatura.

“O mundo e a academia que digam o que quiser. Não estou aqui para dizer o que ela é. O sonho dela, o mundo interior dela, ela escreveu com as poucas palavras que tinha, nos cadernos apanhados do lixo, para deixar a esta geração um grande legado. Transformou o nada em alguma coisa”.

Paulina Chiziane

A mulher negra na Literatura

A experiência da mulher negra é, obviamente, um elemento essencial na literatura de Paulina Chiziane, tanto por ser ela mesma essa mulher, quanto porque Paulina Chiziane deliberadamente faz a escolha por contar histórias de mulheres que foram invisibilizadas, seja pelo colonialismo, pela religião ou pelos próprios homens africanos. Neste sentido, faz uma opção semelhante à da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, quando esta aponta para o que chama de “perigo de uma história única”.

“Sempre que falam da mulher africana, é: ‘Pobre mulher africana, coitada, ajudem a mulher africana’. Que história é essa? Sou filha de um continente poderoso, que fez a fortuna de todos. Sou descendente dessa mulher [que teve os filhos e maridos escravizados e levados para a América]”.

Com isso, a literatura de Paulina Chiziane afasta tanto o olhar que objetifica quanto o que naturaliza a opressão sofrida pelas mulheres negras. Em seu discurso, diz, ela inclusive se recusa a usar o termo “escravo” ou “escrava”, e opta pelo termo “escravizado” e “escravizada”, para mostrar que esta não é uma condição natural do negro e da negra, mas uma situação fruto da opressão por parte dos brancos.

 

Paulina questiona também a visão universal de mulher, que apaga e invisibiliza a experiência da mulher negra, em especial a da mulher africana. Em um paralelo com a escritora norte-americana Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura (em 1993), cuja obra é marcada pela discussão sobre maternidade, racismo e escravidão, aborda as diferenças entre a experiência da mãe branca e da mãe negra. “O que é que ocorreu com a mulher negra? Tiraram marido, quatro, cinco, seis filhos dessa mulher e os meteram no barco para nunca mais voltar. É preciso pedir perdão à mulher negra”.

Sobre ser mulher e escrever sobre mulheres, diz que enfrentou muita resistência no início, quando publicou o primeiro livro, em 1990. Diz que encontrou também “mulheres moralistas”, que a questionaram sobre uma mulher de idade avançada estar a escrever sobre os assuntos que aborda em suas obras — entre elas o sexo, o auto cuidado, o conhecimento do próprio corpo e o questionamento de rituais e pensamentos que colocam a mulher em posição inferior à dos homens e em posição de rivalidade com outras mulheres. “Acharam que, no máximo, eu deveria escrever livros de receitas”.

Niketche - Uma história de poligamia, de Paulina Chiziane

Em Niketche — uma história de poligamia, seu livro mais famoso, dá visibilidade ao matriarcado existente no norte do país, onde as mulheres frequentam as “escolas do amor” e aprendem sobre sexo. Também denuncia o patriarcado do sul do país e os costumes que colocam as meninas como cidadãs de segunda classe, e, polêmica, afirma que as mulheres ajudam a manter esse sistema, oprimindo umas às outras para manter os homens no poder e ganhar sua simpatia. Então, como solução, defende a união entre as mulheres e afirma que é possível resistir, dando o exemplo da resistência da religião africana frente à Igreja Católica. “[O povo negro] de dia vai à igreja e é batizado, mas de noite está com o seu orixá”.

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O processo de trabalho de Paulina Chiziane

Quando questionada sobre aonde vai buscar inspiração para suas obras, Paulina Chiziane afirma que nunca vai à procura de um tema, ele simplesmente aparece, porque está ao seu redor, e porque ela fala de seu cotidiano e de sua cultura. Conta histórias que são parte da tradição de Moçambique.

Para escrever Niketche, por exemplo, baseou-se em uma história que ouviu à sua janela, uma briga que ocorria entre duas mulheres, por conta de um homem, marido de uma e amante da outra. Com isso, foi ter com as duas e ouviu outras que viviam a mesma situação de ter de aceitar um marido polígamo. Apesar de enfrentar resistências por questionar a tradição e escrever sobre aspectos muito íntimos das mulheres, vê mudanças e se sente apoiada.

Por conta do livro, já esteve em muitos países, a conversar com mulheres negras — um dos encontros que lhe marcou foi uma visita à China, onde participou de uma roda de conversa para discutir o livro. “Falamos como se fôssemos irmãs, pois tínhamos um elemento em comum, que é o do ser subalternizado”. Subalternizado, porém, não subalterno, e que resiste. Sobre ser uma referência para muitas mulheres negras que se veem pela primeira vez em seus escritos, diz que não se sente assim. “Não me sinto um pilar. Acho que cada um coloca uma pedra na estrada para o futuro”.

Porém, é inegável que Paulina Chiziane é um espelho para as que a leem — as moçambicanas, as do continente africano, as descendentes das africanas escravizadas, frutos da diáspora, e as não-negras. Ainda sobre Niketche, uma boa notícia: a autora, em primeira mão, afirma que está em negociação com produtores para que a mesma vire uma série. Em breve, as “filhas” e seguidoras de Paulina Chiziane estarão e se verão na TV.

Texto publicado originalmente em Medium.

 

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