[LIVROS] Somos Guerreiras: Como a socialização feminina molda as nossas experiências individuais

[LIVROS] Somos Guerreiras: Como a socialização feminina molda as nossas experiências individuais

Escrito por Glennon Melton e lançado no Brasil pela editora Intrínseca, o livro Somos Guerreiras conta a história da autora, desde a infância até a vida adulta, mostrando os seus problemas com autoestima, vícios e relacionamentos. A história se destaca por tratar de temas sérios, como alcoolismo e bulimia, de uma forma realista e envolvente, conseguindo fazer com que o leitor se coloque no lugar de Glennon, entenda a sua dor e passe por uma jornada de auto descoberta e mudança junto com ela.

Mas, apesar de ser uma história de “superação”, Somos Guerreiras não faz o estilo “autoajuda”, nem mesmo tenta trazer lições morais para o seu leitor, a história apenas retrata a vida de uma mulher normal, que apesar de ter sido criada em uma família amorosa e estável, acaba desenvolvendo diversos problemas pelo simples fato de ser uma mulher e viver na nossa sociedade. E, é aqui que o livro traz o seu ponto principal: a forma como a socialização feminina nos ensina a odiar o nosso corpo e nos molda dentro de padrões estéticos e comportamentais através da violência, que se estendem por toda a nossa vida.

“Meu corpo tornava impossível ser bem sucedida como garota. O universo havia me dado algumas regras muito óbvias de feminilidade: ser pequena, silenciosa, franzina, estoica, leve, suave, não peidar, não suar, não sangrar, não ter erupções cutâneas nem sentir cansaço, fome ou desejos.

Mas o universo também havia me dado um corpo pesado, barulhento, com cheiro forte, faminto e cheio de desejos – tornando impossível seguir essas regras. Ser humana em um mundo sem tolerância para a humanidade parecia uma armação, um jogo que eu não podia vencer. Mas, em vez de entender que talvez houvesse algo errado com o mundo, conclui que havia algo de errado comigo” (página 226).

Glennon começa a história falando sobre o início da sua bulimia, por volta dos 10 anos, que começou quando ela se tornou consciente do seu corpo e passou a se sentir pressionada a emagrecer para se adequar ao padrão de corpo esperado de uma menina. A autora retrata uma cena onde ela brincava com seus primos na casa da avó, mas não conseguia se sentir livre como eles para usar traje de banho. 

Assim, ao invés de questionar esse desconforto, ela encontra a solução em um distúrbio alimentar pois acredita que é necessário se adequar ao que a sociedade considera correto. Essa cena já mostra como a socialização e o desconforto com o corpo começa desde a infância, criando uma enorme diferença entre a forma como meninos e meninas se relacionam com os seus corpos.

Na adolescência, os problemas de autoestima de Glennon se tornam ainda piores, pois a necessidade de ser notada e de se encaixar em grupos sociais está muito mais presente nessa idade. A autora conta então que criou uma espécie de “representante”, uma personagem que ela utilizava para poder sobreviver ao colégio. Essa personagem era bonita, popular, magra e seguia todas as regras ditadas pelo ensino médio, sem demonstrar seus desejos ou sua personalidade verdadeira. Nessa época, a autora retrata também um episódio que fez com que a sua família a internasse em um hospital psiquiátrico, criando aqui talvez uma das partes mais interessantes dos livros. 

“As regras secretas, incontestáveis, sobre como ser uma garota importante são: Seja magra. Seja bonita. Seja discreta. Seja invulnerável. Seja popular seguindo a liderança dos garotos respeitados.” (p.43)

No hospital psiquiátrico, Glennon pode finalmente ser quem realmente era, sem a ajuda da sua representante, conheceu pessoas que também estavam passando por problemas e estavam mostrando suas verdadeiras personalidades no hospital. A autora consegue trazer nesse momento uma boa reflexão sobre a forma como a nossa sociedade nos adoece, gerando diversos problemas psicológicos e tornando o ato de viver mais difícil para algumas pessoas do que para outras. Depois de algum tempo no hospital, ela retorna, mas continua com os mesmos vícios, pois é a única forma que ela sabe como sobreviver sendo uma menina adolescente no ensino médio:

“Você usou de todos os meios necessários para seguir as regras secretas. Você sacrificou sua saúde, seu corpo, sua dignidade, e fez tudo isso se mantendo sempre bonita. Você não perturbou o universo com nenhum dos seus sentimentos ou questionamentos. Permaneceu pequena. Não ocupou espaço demais. Você nunca veio a superfície, e quando foi necessário -quando precisou de oxigênio- afastou-se e respirou longe de nós. Nós nem sequer chegamos a conhecê-la. Parabéns.” (p.44)

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Esse uso de uma “representante” se estende durante a faculdade e o início da vida adulta, quando ela passa também a usar diferentes drogas e desenvolver o alcoolismo para conseguir ser a “mulher perfeita” que todos os homens procuram, frequentando festas de fraternidades e fazendo sempre o que é esperado dela, da mesma forma que fez com a bulimia para conseguir o corpo ideal.

É nessa parte da vida que Glennon conhece Craig, com quem se casa e começa uma família alguns anos depois, trocando os vícios pela maternidade. Esse casamento, no entanto, não é o “final feliz” que foi sempre prometido para nós mulheres, e sim mais uma forma de se esconder de si mesma e assumir um papel para o qual fomos moldadas desde crianças: o de mãe, dona de casa e esposa que sempre satisfaz o marido. Mas, quando o seu casamento entra em crise, Glennon é forçada a enfrentar seus problemas, tentar se entender, se reconectar com a sua verdadeira e personalidade e começar uma jornada de auto descobrimento com o qual a leitora é convidada a participar com ela.

Não seria um exagero dizer que em algum nível todas nós mulheres nos identificamos com a autora e a sua história em diversos momentos, e é por isso que Somos Guerreiras é uma leitura tão poderosa e importante. Não é preciso desenvolver um distúrbio alimentar como a bulimia – apesar de crescer cada vez mais o número de mulheres que desenvolvem doenças como essa no Brasil – para entender o desconforto de Glennon com seu corpo e a necessidade de mudá-lo para se encaixar nos moldes da sociedade.

Não é preciso ter filhos para se sentir representada pela forma como a autora retrata a maternidade, pois todas nós lidamos com a maternidade compulsória, não é preciso ser religiosa para entender a forma como a personagem se relaciona com a religião, criticando o papel da mulher nele, não é preciso ser casada para entender a cobrança que Glennon sofre para ser a “esposa perfeita”. Não é preciso passar por tudo isso para ter empatia, pois todas nós mulheres passamos por essas e várias outras formas de violência durante a nossa vida.

Somos Guerreiras é um livro perfeito para ilustrar a necessidade que temos de contar nossas histórias, de apoiar e ler mulheres escritoras, pois no mercado literário, que ainda é extremamente masculino, histórias como essa se destacam por trazer a tona problemas relevantes da vivência feminina.

Booktrailer:

Precisamos falar sobre a pressão que meninas e mulheres sofrem todos os dias, precisamos falar sobre a relação conturbada que temos com o nosso corpo devido aos diversos estímulos que crescemos recebendo da mídia para conseguir o “corpo perfeito”, precisamos falar sobre maternidade, casamento, saúde mental e vários outros fatores que influenciam as nossas vidas como mulheres. Precisamos falar sobre os diversos papéis que adotamos durante a nossa vida para sobreviver como mulheres, mas mais importante de tudo: precisamos ser ouvidas. Então comece por ouvir Glennon e outras mulheres escritoras, pois Somos Guerreiras é definitivamente um bom lugar para começar.

Somos GuerreirasSomos Guerreiras

Autora: Glennon Melton

Tradução: Andrea Gottlieb

Editora Intrínseca

320 páginas

Onde comprar: Amazon

Este livro foi cedido pela editora para resenha.

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Feminista. 20 anos. Libriana indecisa com ascendente em leão que sonha em viajar o mundo. Estudante de publicidade e propaganda, apaixonada por séries, livros, filmes e levemente viciada em ver fotos de animais fofinhos na internet.
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