[6º OLHAR DE CINEMA] A Casa de Lucia: Documentário sobre refugiados sírios no Brasil (crítica)

[6º OLHAR DE CINEMA] A Casa de Lucia: Documentário sobre refugiados sírios no Brasil (crítica)

Segundo Aaron Cutler, curador do festival, há na programação deste ano 8 filmes cuja temática é a situação dos refugiados de guerra, sendo A Casa de Lucia (2017) o filme chave desta seleção. Programado para ter sua estreia mundial na Mostra Outros Olhares, que privilegia filmes com uma enorme variedade de estilos, linguagens e abordagens em torno de questões urgentes do mundo atual, este que é o primeiro longa documental de João Marcelo, e a primeira experiência de Lucia Luz com cinema, não poderia estar melhor encaixado.

Lucia nasceu no Kuwait, mas foi morar e estudar em Aleppo na Síria, onde começou um relacionamento com Abed, com quem está casada atualmente. João Marcelo tem mestrado em Música pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Há 3 anos, Lucia chegou ao Brasil na condição de refugiada e é a primeira pessoa a participar do programa de apoio aos refugiados da UFPR, concluindo aqui seus estudos em arquitetura e validando seu diploma.

Juntos, João Marcelo e Lucia decidiram contar a história da saída dela da Síria em guerra e a chegada ao pouso seguro no Brasil. O contato deles se deu a partir do programa da Universidade, que tem um projeto voltado para o ensino de português brasileiro para migração humanitária, no qual a principal procura é por parte de sírios e haitianos. Não à toa, hoje a capital do Paraná é considerada o local de maior colônia síria no país.

A Casa de Lucia
Pôster A Casa de Lucia (Reprodução)

No meio deste processo que visava recontar a história da chegada de Lucia ao Brasil, sua adaptação e dificuldades, surgiu a oportunidade dela visitar seus familiares no Kuwait. Em 6 dias os planos iniciais do roteiro precisaram ser alterados, e o que havia começado com visitas de João Marcelo ao casal Lucia e Abed, com formalismo de um documentário convencional, começa a dar lugar às gravações de Lucia em seus preparativos para regressar ao Oriente.

Ao longo dos 70 minutos de filme, a protagonista se desloca e começa a ocupar também as funções de direção e roteiro. Aquilo que a priori seria um documentário sobre Lucia, vai se transformando no documentário de Lucia. Interessante destacar que essa transformação em termos de linguagem narrativa, que altera o eixo do roteiro, promove ao mesmo tempo uma tomada de consciência da protagonista em relação aos cerceamentos em que seus familiares ainda vivem naquela região, que altera não apenas o ponto de vista de Lucia, mas também o do espectador. Em determinado momento, ela diz literalmente que apesar da saudade dos pais, irmãos e amigos, não vê a hora de voltar ao Brasil, pois nada pode ser mais importante que a liberdade de pensamento, de credo e de agir.

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O mérito de João Marcelo em reconhecer e abraçar essa história tão relevante no cenário mundial atual, alinhando seu argumento a uma montagem ágil e que costura os afetos experimentados por Lucia de forma ímpar, por si só já faz com que esse filme tenha sua importância na filmografia brasileira atual.

Para finalizar essa experiência fílmica embebida em ética, empatia e afetividade, Lucia retorna a sua casa brasileira, reformada por Abed, e apoiados em vídeos e fotografias caseiras, o casal através da memória refaz o percurso que os trouxe ao Brasil e nos participa desse momento de total reconexão com suas origens. São muitas as moradas de Lucia e de milhares de outros que como ela se encontram hoje na condição de refugiado. Poder testemunhar a eficácia de um programa tão nobre de apoio aos expatriados, que sonham um dia poder voltar para a terra natal a fim de reconstruir suas raízes, é um sopro de esperança em tempos de políticas incertas num país que vive um golpe político-midiático.

A Casa de Lucia e “Era o Hotel Cambridge” (2016, Eliane Caffé) são dois filmes com direção feminina que, apesar de formalmente distintos, se ocupam de um projeto arquitetônico-urbanístico de ampla moradia, acolhimento e refúgio nas cidades brasileiras.  

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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