Diário de Uma Garota Perdida: a condição feminina sem tabu no cinema dos anos 20

Diário de Uma Garota Perdida: a condição feminina sem tabu no cinema dos anos 20

Estupro, prostituição, sexualidade e condição feminina: se temas como estes causam controvérsias ainda nos dias de hoje, durante a primeira metade do século 20 eram assuntos velados. O filme Diário de Uma Garota Perdida é exemplo da audácia do cineasta George Wilhelm Pabst ao abordar tais questões em uma época em que (quase) ninguém ousava contrariar os códigos morais.

Famoso por lançar ao estrelato atrizes como Greta Garbo, Asta Nielsen e Louise Brooks, G.W. Pabst fez do erotismo e da tragédia social uma constante em sua obra. Flertando com o expressionismo alemão, o cineasta austríaco expõe a decadência de uma Boêmia devastada pela guerra, ao passo em que explora o papel central do sexo na sociedade.

Estes aspectos são vistos em filmes como A Caixa de Pandora (1929), sua obra máxima. O filme eternizou Louise Brooks como a sensual Lulu, jovem que utiliza seus dotes físicos e sexuais para ascender socialmente. De maneira audaciosa e inédita, A Caixa de Pandora traz à tona questões como a homossexualidade feminina e o tráfico de mulheres.

Diário de uma Garota Perdida
Louise Brooks em cena de Diário de Uma Garota Perdida (G.W. Pabst, 1929) (Foto: Reprodução)

Seguindo o estrondoso sucesso de A Caixa de Pandora em todo o mundo, Pabst juntou-se novamente a Louise Brooks e, no mesmo ano, lançou-se à produção de Diário de Uma Garota Perdida, que traz semelhanças com a obra anterior. Nele, Brooks é Thymian, uma ingênua adolescente, filha de um farmacêutico, que, após ser abusada sexualmente pelo assistente de seu pai e engravidar, é enviada a um reformatório, de onde foge. Após a fuga, a jovem, sem rumo, é forçada a sobreviver da prostituição.

Diário de Uma Garota Perdida estreou em Viena no dia 27 de setembro de 1929, e em Berlim no dia 15 de outubro. O filme causou escândalo entre os conservadores da Igreja Evangélica Alemã, tendo sido banido de diversas cidades ao redor da Boêmia. Considerada pornográfica, a obra sofreu censura e cortes significativos tiveram de ser feitos para que retornasse às salas de cinema.

Diário de uma Garota Perdida
Alice Roberts e Louise Brooks em cena de A Caixa de Pandora (G.W. Pabst, 1929). De maneira ousada, o filme traz à tona questões como homossexualidade feminina, prostituição e tráfico de mulheres

Os inúmeros cortes tornaram o erotismo da obra mais sugestivo do que explícito. A cena da sedução, concebida para ser um bailado, foi dirigida, segundo Brooks, como “uma série de manobras sutis, quase mudas, entre uma garota inocente e um homem imprudente”. [1] A expressão psicopática do ator Fritz Rasp reforça a densa atmosfera que permeia a cena.

Outros momentos do filme foram particularmente chocantes para as audiências de fins de 1920: a morte da governanta durante um aborto; a diretora do reformatório, uma lésbica sádica (interpretada por Valeska Gert) que toca gongo enquanto observa as moças da instituição fazerem exercícios físicos (Louise Brooks chama este momento de “cena do orgasmo”); e a famosa cena do bordel, em que Thymian arqueia seu pescoço em submissão sexual.

Diário de uma Garota Perdida
Louise Brooks na famosa “cena do orgasmo” de Diário de Uma Garota Perdida (G.W. Pabst, 1929) (Foto: Reprodução)

Após os devidos cortes, o filme foi relançado em 6 de janeiro de 1930. Os críticos, porém, não reagiram bem à nova versão censurada, que, para eles, fazia pouco sentido. Segundo o roteirista Rudolf Leonhardt, “sequências inteiras foram cortadas sem misericórdia. Em uma versão, se me lembro bem, eles cortaram 450 metros, e mesmo nessa ou em outra versão, fizeram mais 45 cortes… o filme chega ao fim pouco depois do meio do nosso roteiro, de forma inconclusiva e incompreensiva. Eu assisti sozinho em um cinema em Paris e, no final, permaneci sentado porque pensei que o filme estivesse quebrado.” [2]

À época, Louise Brooks foi criticada por seu estilo de atuação, “monótono para a tragédia que tem de apresentar” [3], distanciando-se da teatralidade melodramática característica do cinema mudo, e em busca do realismo. Para os críticos, a atriz não interpretava — ao contrário, representava sempre a si mesma. Este aparente defeito era uma enorme qualidade para Pabst, avesso a melodramas e sentimentalismos. Em sua autobiografia “Lulu in Hollywood“, Louise escreve: “Ele queria o choque da vida para revelar emoções imprevistas. Todo ator tem uma animosidade natural por outro ator, presente ou ausente, vivo ou morto”.

Diário de uma Garota Perdida
Louise Brooks em cena de Diário de Uma Garota Perdida (G.W. Pabst, 1929) (Foto: Reprodução)
Diário de uma Garota Perdida
Louise Brooks durante as gravações de Diário de Uma Garota Perdida (G.W. Pabst, 1929). A atriz foi criticada por seu estilo de atuação pouco dramático para os padrões do cinema mudo (Foto: Reprodução)

As vidas de Brooks e Thymian estavam emocionalmente interligadas: como a personagem, a atriz havia sido molestada por um vizinho, ainda na infância, e foi culpada de provocar o ato. “A grande arte dos filmes”, completa, “não consiste em movimentos descritivos do rosto e do corpo, mas em movimentos do pensamento e da alma transmitidos em uma espécie de intensidade isolada”. [4]

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AS ORIGENS LITERÁRIAS DE ‘DIÁRIO DE UMA GAROTA PERDIDA’

O roteiro de Diário de Uma Garota Perdida é livremente baseado no romance Tagebuch einer Verlorenen (traduzido nos EUA e Reino Unido como Diary of a Lost One), de Margarete Böhme, publicado pela primeira vez na Alemanha em 1905. Ao contrário do que se pensa, o filme de Pabst não é a primeira adaptação cinematográfica da obra: o livro já havia originado um filme em 1918, estrelando o então jovem ator Conrad Veidt (de O Gabinete do Dr. Caligari e Casablanca). Esta primeira versão encontra-se, atualmente, perdida.

Diário de uma Garota Perdida
Um raro fotograma da primeira versão de Diário de Uma Garota Perdida (Richard Oswald, 1918), estrelando Conrad Veidt e Erna Morena. O filme encontra-se, atualmente, perdido (Foto: Reprodução)

Narrado em primeira pessoa pela personagem principal, o romance inicia-se na década de 1890. Nele, acompanhamos a plangente vida da jovem Thymian, suas alegrias enquanto menina e sua tragédia ao ser relegada a condição de marginalidade, e forçada, por circunstâncias da vida, à prostituição como forma de sobrevivência.

Embora hoje esquecido, Tagebuch einer Verlorenen é apontado como um dos mais consagrados best-sellers da primeira metade do século 20. A obra foi traduzida para 14 línguas, e, no fim da década de 1920, havia vendido mais de 120 mil cópias ao redor da Europa e América. Escrito em forma de diário, o livro teve sua autoria contestada: a autora Margarete Böhme apresentava-se apenas como a editora de um diário que havia chegado às suas mãos. Para alguns, a personagem Thymian teria, realmente, existido.

Para o crítico e ensaísta Walter Benjamin, Diário de uma Garota Perdida é “um inventário completo do comércio sexual”. [5] De maneira crua, a obra desnuda a hipocrisia e a falsa moralidade cristã, que, ainda nos dias de hoje, reprime e sacrifica mulheres. 

Não há dúvidas de que a mulher deve ser livre para fazer o que quiser com seu corpo”, escreve Böhme. “Por que deve-se estabelecer um tribunal de opinião pública para esmagá-la em um abismo de infâmia e desprezo?” [6]

O livro foi banido de circulação após a ascensão do nazismo na Europa. Somente em 2010 a obra foi reeditada e relançada de forma independente nos EUA por Thomaz Gladysz, fundador da Louise Brooks Society. Uma rara edição norte-americana publicada em 1908 encontra-se disponível para domínio público no Internet Archive (clique aqui para ter acesso).

Referências:

[4] BROOKS, Louise. Lulu in Hollywood — 1944
[5] Huffington Post — A Lost Girl, a Fake Diary and a Forgotten Author
[6] BÖHME, Margaret. Diary of a Lost One, p. 159.
 
 Foto Capa: Reprodução


Originalmente publicado em Cine Suffragette

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