[LIVROS] Anita – Um Romance sobre a Coragem e a representação secundária da heroína

[LIVROS] Anita – Um Romance sobre a Coragem e a representação secundária da heroína

O movimento feminista latino, e especialmente o brasileiro, talvez apenas agora esteja se consolidando como constante e alcançando novas mentes, resgatando, em meio a isso, antigas – e muitas vezes desconhecidas – heroínas femininas de nossa história nacional. Uma dessas heroínas, apesar de não exatamente desconhecida, é Anita Garibaldi, ou simplesmente Anita, a guerreira santa catarinense que batalhou lado a lado com os farroupilhas pela República e que, no novo romance de Thales Guaracy, teve sua figura resgatada em uma recapitulação informal da história do Brasil e da Itália. Se engana, porém, quem se deixa levar somente pelo título do livro.

Confira a sinopse:

“Um romance sobre coragem, um romance sobre Anita Garibaldi. Neste romance repleto de beleza literária e cores realistas, tão chocante quanto maravilhoso, tão particular quanto universal, Thales Guaracy olha Anita pelos olhos de Giuseppe Garibaldi, a única pessoa que testemunhou por completo a vida da revolucionária. E assim desvenda e nos apresenta, com estilo único, pessoal e emocionante, a mulher que se atira sozinha sobre o exército inimigo; que corta os cabelos do marido por ciúme e o ameaça com um par de pistolas; que abandona os próprios filhos entre desconhecidos para atravessar um país conflagrado, escondida sob as cartas de um carro de correio, até uma cidade sitiada. E que aprendeu que “as causas perdidas são as mais certas”, tornando-se uma das mais extraordinárias personagens da história, considerada a “heroína de dois mundos”, precursora e símbolo do feminismo, representação de mulher forte e independente.”

O retrato trazido no livro da história de Anita perpassa desde a adolescência da mesma, quando ainda era, segundo o livro, Aninha do Bentão, até a sua morte em Mandriole, Itália, mais de vinte anos depois, já sendo conhecida como a “Heroína dos Dois Mundos” e estando presente no folclore brasileiro e italiano.

Anita
Anita Garibaldi ou, simplesmente, Anita

O interessante desta versão romantizada da história de Anita, assim como dos demais livros que representam versões românticas de fatos históricos, é ver as relações, diálogos e acontecimentos construídos, e assim, modificados para se adequarem à proposta (mais) livre da narrativa, havendo sempre a dúvida se os mesmos são (completamente) reais ou não.

É fato, porém, que essa sensação de incerteza quanto a absoluta veracidade das relações e detalhes mostrados nesse tipo de narrativa é proposital, sendo o objetivo do livro, além de retratar acontecimentos reais de uma nova forma, o de abrir espaço para a imaginação do leitor através da perspectiva trazida pelo autor.

 

O curioso, porém, é que apesar de termos a impressão de que a narrativa deveria ser sobre a história de Anita, descobrimos, ao longo de nossa leitura, que a figura de Anita é mais uma presença na história do verdadeiro protagonista, Giuseppe Garibaldi, do que, propriamente, a personagem principal da história, como somos levadas a acreditar pelo título.

Anita

A história se inicia já com Giuseppe, idoso, relembrando de seus dias com Anita. Ela, por sua vez, começa sendo representada como uma mulher forte, que foi inclusive capaz de evitar por si só um estupro iminente e que conheceu o sofrimento decorrente não apenas da condição feminina, mas da miséria que ainda atinge diversas brasileiras. Foi esta força que fez Anita abandonar sua família em Laguna e se lançar ao desconhecido e a guerra junto com Giuseppe. Seu protagonismo, entretanto, termina nessas poucas páginas iniciais.

Com a evolução de Garibaldi de apenas narrador para personagem é mudado também o foco da narrativa do livro. Esta passa a cair sobre Giuseppe e suas façanhas militares, abandonando o (pseudo) protagonismo de Anita, sendo ela relegada ao papel, por mais que ainda acompanhe Garibaldi em diversas batalhas, de mulher do soldado. Não é ao acaso que a história continua mesmo após a morte de Anita, nem que os feitos de Garibaldi são aqueles narrados pelo autor ao invés do período que a mesma ficou fora dos campos de batalha, visto que, apesar da proposta, ela nunca foi a verdadeira protagonista do livro.

Anita passa de mulher independente e nata revolucionária, a personagem secundária na história de Garibaldi. Por vezes, somos levadas a acreditar que seu protagonismo permanece intacto, principalmente durante os diálogos da mesma com Garibaldi, logo vemos, que a única forma dela ser trazida de volta a história, isto é, de suas falas e pensamentos serem descritos, é quando tem a ver com seu famoso marido.

É evidente que Guaracy nos vende uma história que tem Anita como protagonista, mas em vez disso entrega-nos o relato de um Giuseppe Garibaldi saudosista, lembrando-se de seus dias de glória e de guerra com Anita – e após a morte desta – em meio a sua morte próxima, em uma casa em Caprera.

Anita
Thales Guaracy

Anita é, sim, uma presença constante no livro, tanto que no início, mesmo sendo o relato narrado por Giuseppe, não pensamos que tal desvirtuação da proposta propagandeada ocorrerá, mas ocorre. Anita torna-se uma personagem da história de Giuseppe, e não o contrário como indica o próprio título do livro, e como tal, tem um papel secundário ao protagonista, não sendo seus pensamentos, salvo aqueles que ela mesma escolhe compartilhar, conhecidos pelo leitor e, dessa forma, os sentimentos e experiências de Anita são, mesmo que fortes e pesados, perdidos na “tradução” feita por Guaracy aos olhos de Giuseppe.

Na realidade, vemos Anita, a todo momento, pelo olhos de Giuseppe. Não que isso, por si só, seja um problema, mas considerando a propaganda de “Anita: um Romance sobre a Coragem” é curioso, e mesmo perturbador, ver como, mais uma vez, a história de uma heroína foi posta, mesmo que indireta e (talvez) não propositalmente, em segundo plano.

Parece que Thales Guaracy, o autor, se esqueceu, na metade do caminho, sobre quem realmente deveria ser o livro e o resultado disso foi uma perda, clara, da chance de falar, única e merecidamente, de um dos grandes ícones feministas – e mesmo humanos – brasileiros e latino-americanos.

Sendo que, ainda, essa “falha” do autor pode ser relacionada com a constante narrativa – seja em livros, em filmes ou mesmo em séries – em que a personagem feminina, por melhor que seja, tem suas habilidades diminuídas quando em comparação com o personagem masculino. Aqui, o caso é ainda pior: a história de Anita é completamente desvinculada dela mesma, devendo ser contada – apesar do prometido – por Giuseppe.

No mais, no aspecto histórico – claro, nos limites de um romance histórico – se trata de uma leitura interessante, em que podemos aprender com mais detalhes sobre uma parte importante da história brasileira. No aspecto narrativo, e talvez o grande trunfo de Guaracy, nos deparamos com uma forma poética e ritmada de se contar uma história, em que rimas e dialetos são usados de forma enriquecedora ao meio narrativo do livro.

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O que mais nos chama a atenção na escrita é que, entretanto, a representação feita de um dois únicos – de um total de dois – personagens negros (com falas) do livro, o soldado gaúcho Aguiar, cai, também, na constante de sub-representação dessa parcela da população mundial.

Apesar de ser (muito) mais citado, e relevante, do que a ama de leite – um dos típicos papéis da mulher negra no imaginário cultural brasileiro – Catalina, a descrição e representação feita de Aguiar foca apenas no fato do personagem ser negro, sendo tal característica, a todo momento, enfatizada e utilizada como identificação do personagem pelo autor, de forma que as demais (possíveis) características de Aguiar tornam-se obsoletas ou sequer são citadas.

Tal escolha do autor não pode ser confundida com o modo de se falar ou mesmo com o pensamento abertamente (mais do que hoje) racista da época, sendo essa caracterização, e identificação, dos personagens negros é feita de forma livre e consciente pelo autor.

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A grande questão, porém, é justamente a representação secundária, e por isso sensorialmente incompleta, que é direcionada à personagem feminina de maior relevância do livro e que, segundo o título, deveria ser a sua protagonista.

Tal falha, entretanto, não é exatamente surpreendente ou inédita, mas apenas mais uma sub-representação que as heroínas históricas – ou mesmo as mulheres em geral – estão sujeitas, ainda que a narrativa seja, teoricamente, sobre elas mesmas. É certo, portanto, que a esperança com que nos dispomos a essa leitura é substituída, antes mesmo do fim da narrativa, por um outro sentimento que já é a nós (mulheres) infelizmente familiar, o de frustração.

Anita
Giuseppe Garibaldi

Apesar de o nome do livro ser Anita: um Romance sobre a Coragem fica claro que o público alvo permanece sendo aquele que sempre foi: homens brancos, isto é, aqueles que podem – em absoluto – se verem na figura do verdadeiro protagonista da narrativa, Giuseppe Garibaldi.


Anita

Autor: Thales Garacy

Editora Record

Este livro foi cedido pela editora para resenha.

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