[CINEMA] Divinas Divas: sobre lugares de afetos e memórias (crítica)

[CINEMA] Divinas Divas: sobre lugares de afetos e memórias (crítica)

Divinas Divas (2016) é o primeiro filme dirigido por Leandra Leal. A atriz, multipremiada no cinema e na televisão, desloca seu olhar e sua agência para trás das câmeras a fim de contar uma história que como ela mesma diz: “só ela poderia fazê-lo”. O documentário aborda a trajetória de oito artistas que fizeram história no Rival, teatro localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, que pertence à família de Leal há gerações. Curiosamente, o teatro situa-se atrás da praça apelidada de Cinelândia, devido ao grande número de cinemas que havia na região, onde hoje só existe o tombado Odeon. Não à toa é no cinema que a memória do Rival, assim como a destas artistas, ficará eternizada.

Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Brigitte de Búzios, Camille K., Fujika de Halliday e Marquesa viram Leandra Leal crescer na coxia e nos bastidores da casa. E é com essa premissa que vemos o filme começar. A câmera subjetiva muitas vezes enquadra o olhar do espectador atrás das cortinas do palco do Rival, como se a pequena Leandra, que acompanhava a mãe na infância, ainda espiasse aquele universo mágico das travestis. A espiadela agora tem roteiro escrito a quatro mãos por Leandra, Carol Benjamin, Natara Ney e Lucas Paraizo. O tour de force para traçar esse caminho que além da memória das artistas, também abarca a memória da própria diretora, acaba por contar não apenas a história destas oito personalidades, mas também um pouco sobre a história de nosso país.

É possível traçar um paralelo entre a ditadura militar que perseguia e reprimia as artistas pelas ruas da cidade, com a vida pessoal de cada uma delas. Muitas precisaram, inclusive, sair do país para conseguir se realizar ao performatizar o feminino.

Algumas contam o quanto o “estar/ser mulher” se confundia com a própria carreira artística, pois para Marqueza, por exemplo, só era possível encarnar essa persona feminina nos palcos, já que sua família não poderia saber ou não aceitava a sua transgeneridade. As memórias de cada uma delas são apresentadas ao mesmo tempo em que estão em plena atividade ensaiando um novo espetáculo ao estilo daqueles que realizavam na década de 1960.

Histórias curiosas de vanguarda e pioneirismo como a de Eloína dos Leopardos, que revolucionou a cena carioca ao criar o “show dos Leopardos”, no qual gays e mulheres iam a casas de show para verem homens fazendo strip-tease, se amalgamam a relatos sofridos de internação em manicômios psiquiátricos que visavam uma “cura gay”.  

Apesar da luta de cada uma se confundir com a luta de todas as pessoas trans para simplesmente poderem existir com dignidade dentro da coletividade, o olhar da diretora não é jamais de condescendência, mas sim de exaltação e admiração por ter tido como referências artísticas tantas pessoas extraordinárias.

Divinas Divas

Nesse sentido, vê-se uma Leandra Leal que, ao mesmo tempo em que se coloca em cena partindo de relatos de suas memórias com as personagens, e com o próprio teatro Rival, jamais rouba o protagonismo que é todo dedicado às divas, cada uma em sua singularidade. Aliás, conhece-las em suas idiossincrasias é um dos pontos chaves do filme que deixa claro que cada ser humano tem uma trajetória única, apesar de partilhar das mesmas privações sociais.

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A montagem que firma um diálogo entra as memórias narradas pelas próprias divas, com os ensaios para o espetáculo comemorativo de cinquenta anos de profissão, deixa o documentário fluído e dinâmico, tornando a história ainda mais deslumbrante. A trilha sonora aliada ao ar neon do teatro de revista, remete a um tom saudosista de uma era de ouro das travestis que parece não existir mais. O debate sobre as questões de gênero urgem no atual cenário político brasileiro e não poderia haver melhor época para este documentário tão pungente ser lançado, tendo em vista que sua produção durou quase dez anos.

Sem arestas ou pontas soltas, Divinas Divas venceu em 2016 os prêmios de público no festival norte-americano South by Southwest (SXSW), no Fest Aruanda e o de melhor documentário do Festival do Rio. Se Leandra Leal já é considerada uma das melhores atrizes brasileiras da sua geração, na função de direção estreou também com um tiro certeiro e só nos resta esperar ansiosas por suas próximas realizações.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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