Racismo Geek: porque a fidelidade histórica nunca foi uma desculpa

Racismo Geek: porque a fidelidade histórica nunca foi uma desculpa

O silêncio (majoritário) frente as questões apontadas na série “Cara Gente Branca”, da Netflix, que resenhamos aqui, quando contraposto com os diversos protestos noticiados previamente à sua estreia, torna impossível para nós, alvos e/ou pessoas empáticas não-racistas, de ignorarmos o claro significado dessa oposição. Aqui, pegaremos esse aspecto da interseccionalidade e faremos uma análise do racismo presente no mundo geek e reproduzido incessantemente com a desculpa de ignorância e fidelidade histórica.

Comecemos pela recente declaração do vice-presidente de vendas da Marvel, David Gabriel:

“(…) Nós vimos as vendas de qualquer personagem que era diverso, de qualquer personagem que era novo, nossas personagens femininas, tudo o que não era um antigo personagem Marvel, as pessoas estavam rejeitando.”

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David Gabriel

Não vamos entrar no mérito de criticar Gabriel neste texto, mas é curioso ver como ele foi rápido em culpar o aumento de diversidade nas histórias da Marvel pelo menor resultado nas vendas, apesar de diversos personagens clássicos da mesma Marvel serem tanto mulheres quanto pessoas de Cor.

Mas isso é o de menos. Afinal, as vendas da Marvel realmente diminuíram após – e apenas – a maior introdução de personagens diversos nos quadrinhos? Arriscamos dizer que não. Existem diversos fatores que interferem no prospecto de vendas de um nicho econômico, de personagens e desenvolvimento da história até mudanças na plataforma de leitura dessas histórias, mas por que a diversidade foi culpada tão rápido?

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Kamala Khan, a nova Miss Marvel

Talvez isso se dá pelo fato de que essas mesmas minorias, apesar de estarem recebendo uma maior representação no mundo geek, ainda não são consideradas amplamente como público alvo das empresas que produzem as mídias geek. E mais, dentro do próprio público geek, quando membros dessas minorias apresentam interesse neste universo, o tem deslegitimado e diminuído pelos “geeks clássicos” (leia-se brancos).

É exatamente esta mentalidade que torna tão difícil tanto a ampliação na diversidade racial das mídias, por aqueles que as escrevem, quanto a crença no discurso de “fidelidade histórica”.

Desde clássicos como Senhor dos Anéis até sucessos recentes como Game of Thrones pecam no quesito diversidade racial, sendo os negros, por exemplo, representados, quando o são, majoritariamente como escravos, piratas ou como a representação do mal na trama.

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“Ah, mas em GoT há um negro super rico!”

Uau, realmente, UM negro rico dentre milhares de miseráveis. Parabéns!

A pior parte desses argumentos que defendem a (quase nula) representatividade de pessoas negras no caso de Game of Thrones é a carta da fidelidade histórica, sendo esta constantemente puxada pelos defensores desta (sub) representatividade, apesar do próprio George R. R. Martin ter afirmado que o mundo de GoT não é o nosso, sendo, portanto, uma fantasia.

Isto é, a fidelidade histórica que é gritada aos quatro ventos pelos defensores da (sub) representatividade, incluindo aqui os próprios criadores de tais histórias, tão culpados quanto os defensores, não pode valer para um mundo conhecidamente fictício, como são aqueles não apenas de GoT, mas da Trilogia de Tolkien, do mundo de J.K. Rowling, entre outros.

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Me pergunto onde estão os personagens negros?

Apesar disto, sabemos muito bem que a tal “fidelidade histórica” é uma falácia, não é mesmo?

A despeito de séries televisivas que trazem a premissa de tratar de uma época real da história da humanidade, não temos a certeza absoluta de que esses mesmos lugares retratados – majoritariamente Reino Unido e Estados Unidos – eram 100% brancos, ou seja, não possuíram nenhuma interferência negra em sua história, especialmente os EUA.

Inclusive, e apesar das negativas, existem diversos relatos de nobres negros, como a rainha consorte do Reino Unido e de Hanover, de 1761 a 1818, Charlotte de Meckelemburgo-Strelitz (1744-1818), reconhecida negra após estudos de sua ascendência.

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Rainha Charlotte

A tal “fidelidade histórica”, na verdade, se trata de uma forma esdruxulamente usada para assegurar que a supremacia branca continue a ser aquela, unicamente, retratada nos meios midiáticos. Notem, também, que tal retratação assegura não apenas que os personagens brancos sejam os eternos protagonistas, ou no mínimo, a totalidade dos personagens, mas, com isso, apaga o papel de personagens negros de diversas histórias – baseadas em fatos reais ou não – ou, no mínimo, relega tais personagens a coadjuvantes e/ou estereótipos ambulantes.

Uma típica forma de apagar personagens negros das narrativas, ficcionais ou não, além da simples exclusão dos mesmos das histórias, é a de mudar a raça de personagens negros e dar-lhes a branquitude, de forma a apagar a representatividade desses personagens não apenas na narrativa, mas no impacto que tal pratica tem na sociedade, tanto para brancos quanto para pessoas negras.

Aqui mesmo em nossas terras tupiniquins, lar de libertários contra cotas raciais (e sociais) pelo argumento da miscigenação e do mito da democracia racial, a tal “fidelidade histórica” é apontada para o default branco, sendo até mesmo as figuras históricas, reconhecidamente, não brancas, esbranquiçadas e representadas, majoritariamente, como de pele clara e traços europeus.

Tal embranquecimento – o chamado whitewashing – ocorreu com diversas personalidades brasileiras, como Chiquinha Gonzaga, pianista e compositora negra pioneira, que foi representada por Regina Duarte e também por Gabriela Duarte na minissérie da Globo exibida em 1999 que leva seu nome, e Machado de Assis, o autor de clássicos como Dom Casmurro, que tem, constantemente, sua condição de negro apagada, sendo, no máximo, descrito como mulato, palavra reconhecidamente racista.

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Chiquinha Gonzaga

Essa prática é tão horrível quanto comum, sendo repetida em diferentes países e formas de entretenimento e comunicação. Vide “Doutor Estranho” (2016), “Peter Pan” (2015) e Ghost In The Shell (2017).

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A índia Tiger Lilly, representada pela branca Rooney Mara

Tanto a falácia da “fidelidade histórica” quanto a ação de embranquecimento de personagens negros, ousamos dizer, são atos piores que a – também constante – discriminação por ridicularização e ódio impregnado que as minorias raciais sofrem. Propomos, assim, a seguinte reflexão: se houvesse representação fidedigna de pessoas negras e suas particularidades culturais e regionais, haveria sequer discriminação de tais pessoas?

Arriscamos dizer que não. Por mais que seja difícil dizer, exatamente, se a causa da presente situação de sub-representação e de violência direcionada a tais minorias é do próprio aspecto da violência ou da sub-representação das mesmas, é certo que a representatividade desses grupos minoritários na mídia contribuí para um melhor entendimento – e convivência – de tais grupos. Não dizemos aqui, é claro, que é papel unicamente da mídia de educar uma nova sociedade, mas que a função que a mesma exerce nunca foi de simples entretenimento.

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Via: @TheCorey291 (Twitter)

É raríssimo para um meio midiático, por exemplo, demonstrar o interesse, digamos, de uma pessoa negra em Star Wars ou de uma pessoa latina – especificamente aqui dos países sul americanos – em Harry Potter, havendo, além do apagamento desses e outros grupos étnicos expostos acima, uma invisibilização dos fãs negros dessas mídias, salvo, no mais, se tais fãs fizerem parte da chamada “minoria modelo” asiática.

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O meio geek, ainda hoje, é representado majoritariamente por e para o padrão branco heterossexual e masculino em que, segundo muitos seguidores, e apesar de algumas poucas presenças, nem mulheres nem minorias étnicas, e especialmente mulheres de tais minorias étnicas, têm vez como admiradores, personagens múltiplos ou, muito menos, protagonistas.

O racismo presente no mundo geek vai desde a tal “fidelidade histórica”, passando pela invisibilização ou total exclusão de tais personagens no universo nerd até, e consequentemente, o impacto negativo que tais ações têm não apenas na percepção que os geeks negros têm de si mesmos e do significado das histórias em suas vidas, mas na forma em que eles são tratados e vistos no mundo geek e pelo mundo geek, especialmente por seus fãs brancos.

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Quem não se lembra da “crise” causada pela possibilidade de um protagonista negro e Jedi na nova trilogia Star Wars?

É preciso, para haver uma eficaz inclusão das pessoas negras no mundo geek, um comprometimento não apenas dos criadores e produtores das mídias geek, aumentando, assim, a representação respeitosa de pessoas negras nas mesmas mídias e, também, o respeito e adoção de tais personagens pelo público geek branco, ao entenderem que o aumento das referentes representatividades não-brancas não irá prejudicar ou diminuir a qualidade de suas amadas mídias. 

Ou seja: tais fãs brancos devem entender que o mundo geek não é propriedade exclusiva deles, mas o oposto, podendo – e devendo – ser aproveitada e usada por todas as raças e etnias.

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Até que essa percepção, finalmente, atinja aos supracitados defensores – estejam eles agindo na ignorância ou não – caberá a nós – alvos ou aliados – continuarmos atentos e vigilantes ao que nos é apresentado, afinal, nunca foi sobre fidelidade histórica.

“Julho é o mês da celebração da luta e da resistência da mulher negra. Marcadamente, o dia 25 representa o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Durante todo o mês, núcleos e coletivos articulam entre si campanhas de cultura, identidade e empoderamento dessas mulheres.” #JulhodasPretas

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