“Caligari!” e o horror do totalitarismo na adaptação de Alexandre Teles

“Caligari!” e o horror do totalitarismo na adaptação de Alexandre Teles

Muitas vezes o horror está mais próximo de nós do que imaginamos. O Gabinete do Dr. Caligari (1920, escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer, com direção de Robert Wiene), um dos filmes mais importantes do expressionismo alemão – período artístico em que os visuais góticos, decrépitos e assustadores eram utilizados para criar uma atmosfera de terror e loucura nas obras cinematográficas, como Nosferatu e Metrópolis – , foi metaforicamente usado para denunciar e criticar a submissão aos regimes totalitários, aos quais populações diversas se submetiam na época.

No enredo, a leitora acompanha Francis (Friedrich Feher) contando através de flashbacks sua experiência com o misterioso Dr. Caligari (Werner Krauss), um homem que aparece em Holstenwall, uma pequena cidade alemã, acompanhado do sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt).

O homem pede permissão às autoridades da vila para que ele e Cesare apresentem um espetáculo na feira local, o qual consistia na retomada de sentidos do sonâmbulo, a fim de que a sorte da população dali fosse lida. Tendo o pedido atendido, o homem começa uma série de shows, ao passo que assassinatos misteriosos, sob circunstâncias coincidentes, também começam a acontecer.

Caligari!

A trama poderia ser vista como simples e óbvia, se não fosse o fato de servir como base para a compreensão das manipulações de massa: Dr. Caligari faz as vezes do Estado e todo o seu poder de influência negativa na vida dos cidadãos comuns, literalmente os hipnotizando e usando para o próprio privilégio. Já Cesare é o povo em si, alheio ao que lhes é imposto, e Francis é o questionador, o que se incomoda com os acontecimentos ruins e procura saber a verdade a qualquer custo.

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A direção de fotografia, cenografia e trilha sonora são riquíssimas, e impressionam com o cuidado nos detalhes para a época – e foi a grandiosidade da obra que inspirou o paulistano Alexandre Teles a adaptar as cenas do filme para o quadrinho Caligari!, lançado pela Editora Veneta o início de 2017. Teles usou uma técnica chamada monotipia para recriar os quadros do filme mudo, a qual ele explica no posfácio do quadrinho:

“O processo de produção do livro começou com a exploração da técnica de monotipia (método de impressão em tiragem única) à maneira negra, que parte de uma superfície lisa, entintada preta e que recebe o desenho da luz por meio da remoção da tinta. Em seguida, com o uso de uma prensa, imprimi as imagens em papel de algodão.” (pág. 335)

O processo de criação da obra deu-se entre 2010 e 2014, e Teles recriou mais de 600 frames do filme em placas de metal. As nuances brancas e escuras, em um verdadeiro balé dicotômico, enchem os olhos da leitora de beleza e pavor, muito bem transportados da tela para o papel. Alexandre decidiu por não colocar na HQ o final propriamente dito do filme, que dá margem a uma reviravolta na história, fazendo com que o protagonista, Francis, perca sua característica de pessoa mentalmente sã e venha a ter todos os episódios narrados encarados por um viés dúbio. Este final incoerente à proposta dos criadores da história foi acrescentado pelo diretor da obra, vindo a contrariar a crítica ao totalitarismo por trás da metáfora do enredo, glorificando as manipulações políticas. 

Assim como o filme, que é mudo, as imagens do quadrinho são seguidas por raros trechos de texto, mas tal linguagem predominantemente visual não atrapalha a leitura: os quadros explicam todo o contexto das cenas, como se o movimento do filme estivesse ali presente. Vale salientar que, se apreciada juntamente com a obra filmográfica original, a experiência de leitura em Caligari! será ainda mais proveitosa. Uma edição para toda fã de horror e terror ter guardada na estante.

Abaixo, algumas imagens do quadrinho, que seguem fiéis aos quadros do longa expressionista:


Caligari!Caligari!

Autor: Alexandre Teles

Editora Veneta

Ano: 2017

335 páginas

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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