Falar de Marcello Quintanilha é falar sobre os detalhes do povo brasileiro em suas mais diversas ramificações. Assim como em Talco de Vidro, quadrinho do autor que esmiúça as perversidades de uma alma gananciosa e invejosa, Hinário Nacional vai mais a fundo e desbrava a questão de abusos físicos e psicológicos por dois pontos de vista: o do abusador e o da vítima.
As seis histórias que dão vida ao quadrinho, sendo elas Ave Maria, Cheia de Graça, o Senhor é convosco, Hinário Nacional, Batalha de Flores, Olhai pro Céu, Eu era o Fenômeno da Minha Classe e Pai Doce dividem-se igualmente entre mostrar as várias faces dos abusos sofridos por mulheres no cotidiano, desde violências sexuais durante a infância a submissões no relacionamento e, do outro lado, esta mesma misoginia sendo plantada como algo aceitável na mente dos homens e encarada como uma conduta tão intrínseca a eles, que se torna corriqueira e “aceitável”.
Quintanilha usa mais uma vez a poesia dos diálogos reais, encontrados nos lares e nas rodas de conversa da maioria dos brasileiros, para colocar o dedo na ferida e alertar sobre os problemas que mulheres enfrentam no dia a dia, como o assédio ao pegar um táxi com um motorista que vê “inocência” na cantada e nos olhares que violam o direito da mulher de ir e vir, e também na autoculpabilização da vítima ao ser estuprada na escola.
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Nesta última, Hinário Nacional (conto que dá título à antologia), o autor se apropriou de uma sutileza extrema ao utilizar a metáfora do estrago que as vespas fazem ao botar seus ovos em larvas, para contar a história de uma menina vítima de pedofilia, que, se desespera ao pensar que a questão do abuso fora um tipo de desobediência à ordem dos pais.
Os perfis psicológicos das personagens são minuciosamente traçados, mesmo as narrativas sendo curtas, para que a leitora se identifique e possa enxergar se enxergar nas personagens, e também os conhecidos que cometem os mesmos erros dos homens das histórias.
A aproximação texto-leitora faz com que fique impossível não se emocionar com tamanha brutalidade (que, infelizmente, nos cerca a cada segundo e a cada passo que damos, sozinhas ou acompanhadas, na rua): a obra exala uma realidade cruel pelas mais de 100 páginas. Sufocadas e reprimindo muitas vezes os próprios sentimentos, as personagens veem na anulação do próprio ser uma fuga para a realidade dolorosa que vivem.
O texto e as imagens interdependem-se e fazem com que a narrativa se torne lúdica e tocante, à medida que os contos avançam, demonstrando que todas as personagens, de diferentes idades e classes sociais, possuem muito em comum. Todo o tom realista, digno das obras de Machado de Assis, aparecem em Hinário Nacional, com o adendo de uma belíssima narrativa visual.
Hinário Nacional
Autor: Marcello Quintanilha
Ano: 2016
128 páginas
Este quadrinho foi cedido pela editora para resenha