Por que Jane Austen ainda tem muito a nos dizer

Por que Jane Austen ainda tem muito a nos dizer

Duzentos anos depois da morte de Jane Austen, seus seis romances continuam a ser a inspiração para incontáveis filmes, séries, web-séries, livros, artigos acadêmicos e até mesmo um musical contado (ou, melhor dizendo, cantado) exclusivamente através de músicas da dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó

Mais que uma escritora da Regência britânica, os trabalhos de Austen atravessaram gerações, culturas e são, hoje, mais populares do que jamais foram durante a vida da autora. Seus livros deram origem a outras obras que transcendem a vida rural de famílias gentis da Inglaterra do final do século XVIII, transformando-se em comédias românticas contemporâneas, musicais indianos e web-séries americanas.

Jane Austen
o que ela diz: não | o que ela quer dizer: não

Para pessoas pouco familiares com a obra de Austen, pode parecer improvável que seus livros tenham dado origem a filmes como “O Diário de Bridget Jones”, associando Austen àquela classe de autores clássicos e enfadonhos que sentimos que temos a obrigação de ler sem ter a menor vontade de fazê-lo. E, de fato, Austen pode parecer distante de nós quando analisamos a sociedade sobre qual ela escreve assim como seu linguajar rebuscado.

Ela nos apresenta, utilizando gramática e vocabulário condizentes com sua época, a vida de jovens mulheres inglesas e as suas dificuldades para alcançar segurança e amor numa época em que elas dependiam totalmente de seus pais e maridos. E, embora isso possa parecer pouco atraente para o público de 2017, todos os anos somos apresentados a novas adaptações de seus livros.

A verdade é que nós, leitores contemporâneos, não estamos acostumados a associar gramática perfeita e a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX à comédia, mas Austen é famosa por seu senso de humor e ironia extremamente afiados, o que explica como um de seus livros mais cômicos, “Emma”, se tornou uma comédia adolescente muito popular nos anos 90.

AS PATRICINHAS DE BEVERLY HILLS, 1995, dir. Amy Heckerling

Jane Austen
Brittany Murphy, Alicia Silverstone e Stacey Dash em “As Patricinhas de Beverly Hills”

Claro, Jane Austen não continua a ser popular apenas por ser engraçada. O respaldo de críticos literários e outros grandes escritores com Samuel Beckett, George Eliot e Virginia Woolf não seria dado a uma autora só porque ela é capaz de fazê-los rir. Austen é celebrada por seu humor, assim como por sua genialidade e pelo pioneirismo de sua técnica literária.

Em “Emma”, ela utilizou pela primeira vez o que viria a ser conhecido como o discurso indireto livre. Utilizando o narrador em terceira pessoa, somos apresentados a Emma Woodhouse, uma jovem rica, esnobe e bem intencionada que está convencida que pode ajudar a pobre Harriet Smith a se tornar mais elegante e a conseguir um marido rico.

Através de uma narração que nos apresenta as impressões de sua tendenciosa protagonista como fatos, somos levados a compartilhar os delírios de Emma que não percebe coisas — algumas passagens quase joyceanas dá várias dicas do que se passa de fato, mas Emma e o leitor são levados a ignorá-las por serem ditas por uma senhora bastante prolixa— que estão bem em frente ao seu nariz. No final, depois de muita vergonha alheia, Emma tem várias epifanias que a levam a reconhecer seus erros e a permitem que ela e Harriet tenham seus finais felizes.

É difícil imaginar um nome melhor para uma adaptação moderna de “Emma” do que “Clueless” (título original do filme que podemos traduzir como “sem noção”). Cher — nossa Emma moderna — é uma adolescente rica e popular que decide melhorar a vida de pessoas que ela acha que precisam desesperadamente da sua ajuda. Ela o faz, claro, decidindo por quem elas devem se apaixonar e fazendo de tudo para que o par fique junto. Depois de uma tentativa bem-sucedida de juntar dois professores solitários, Cher parte para uma segunda missão: transformar a novata maconheira em uma garota popular e uni-la a um cara bonito da turma.

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Emma e Cher começam suas histórias perdidas em um mar de privilégio, mas são tão carismáticas que não se pode evitar torcer pra que elas acertem seus caminhos e encontrem a felicidade. A diretora Amy Heckerling adaptou perfeitamente a narração enviesada do livro, conferindo a Cher longos monólogos autoindulgentes e hilários que nos mantêm ao seu lado mesmo quando sabemos que ela está errada. Além disso, o filme nos trouxe algumas frases icônicas como “Você é uma virgem que não sabe dirigir”, um dos piores insultos da história do cinema, na minha opinião.

Jane Austen
algo: *não é da minha conta* | eu: 🔍👀📝

Brincadeiras à parte, mais do que ser uma boa adaptação, “As Patricinhas de Beverly Hills” nos mostra que Austen continua a ter muito a nos dizer duzentos anos depois de sua morte. Ao nos deparar com o artigo deliciosa e escandalosamente entitulado, “Jane Austen and the Masturbating Girl”, as versões brasileira e bollywoodiana de “Orgulho e Preconceito”, não podemos ignorar o fato de que Austen não excita apenas a mente de anglófilos e nostálgicos, mas continua a ser reinventada e reinterpretada porque seus temas são universais e atemporais. Características compartilhadas com outro grande autor inglês que teve inegável influência sobre a obra de Austen: William Shakespeare.

Embora Shakespeare escrevesse sobre os lugares mais diversos — na maioria dos quais ele nunca colocou os pés — e Austen se limitasse a um cenário muito específico — o dela própria: famílias de classe média alta durante a Regência britânica — suas obras e personagens continuam a ressoar séculos depois das mortes de ambos.

Enquanto Shakespeare escrevia sobre ilhas desertas, a Grécia antiga, uma Veneza que ele jamais conheceu, eventos históricos que ele não tinha a menor preocupação em retratar de forma factual, e Jane Austen retratava a restrita sociedade em que ela vivia fielmente, ambos se assemelham pela complexidade a que eles conferiam a seus personagens. Não importa que o verdadeiro Macbeth tivesse pouquíssimo em comum com o Macbeth de Shakespeare ou que os livros de Austen se passem todos em lugares muito parecidos, ambos transcenderam as ambientações de suas obras em sua investigação profunda pela natureza humana, seu desejo de dissecá-la e apresentá-la em toda sua complexidade.

Jane Austen
eu odeio quando as pessoas confundem a minha timidez com hostilidade tipo não!!! na real eu gosto de você! eu sou só um merda que não sabe se comunicar

Muito foi dito sobre as diversas versões de “Orgulho e Preconceito”, o mais adaptado e amado livro de Jane Austen. Há quem prefira a minissérie de 1995 da BBC, outros o filme dirigido por Joe Wright em 2005 e muitas guerras foram travadas na rede mundial dos computadores e sangue virtual derramado devido a essa discussão. Apesar de haver versões suficientes — tanto literárias quanto audiovisuais — de “Orgulho e Preconceito” para que não se precise assistir ou ler nada além de adaptações de “Orgulho e Preconceito” até o final da vida, achei que seria mais interessante falar sobre a adaptação de uma peça de Shakespeare que possivelmente inspirou Austen a escrever o que é considerada a sua obra-prima.

MUITO BARULHO POR NADA, 1993, dir. Kenneth Branagh

Jane Austen
Keanu Reeves, Denzel Washington, Emma Thompson, Kenneth Branagh, Kate Beckinsale e Robert Sean Leonard em “Muito Barulho Por Nada”

Vocês conhecem a história: garota e garoto se conhecem. Garota e garoto se odeiam. Depois de uma série de eventos cômicos e dramáticos, garota e garoto percebem que se amam e ficam juntos. Essa é a estrutura básica de praticamente qualquer filme estrelado pela Kate Heigl, uma fórmula repetida ad nauseam nas comédias românticas desde o início da história do cinema e que provavelmente continuará a ser repetida por muitos séculos por vir. A trivialidade desta trama, entretanto, não é motivo para descartá-la. Deve haver, afinal, algo irresistível nessa fórmula que nos faz voltar a ela tantas vezes.

Em “Muito Barulho Por Nada”, Shakespeare nos apresenta a Beatrice e Benedick, duas pessoas que não se suportam e que, toda vez que se encontram, colocam seus floretes verbais pra fora e duelam até cansarem. Ambos, com propensões parecidas e inteligência afiada, se mostram contrários ao casamento e ao amor. Beatrice declara no primeiro ato: “prefiro ouvir meu cachorro latir para uma gralha a um homem que me jure amor”; e Benedick desdenha do amigo no segundo: “Muito me admira que um homem que viu como outros homens se transformam em tolos, quando se comportam sob a influência do amor, e que ridicularizou as loucuras dos outros, possa fazer-se objeto do próprio desprezo, tornando-se apaixonado.”

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Benedick se refere a Cláudio, seu bom amigo que se encontra apaixonado pela doce e bela Hero, prima e companheira de Beatrice. Tanto Cláudio quanto Hero, ao contrário de Benedick e Beatrice, são pessoas de temperamento fácil e seu cortejo é simples e rápido. Mas, como sabemos, todo o verdadeiro amor jamais teve um curso tranquilo e uma trama nefasta coloca em cheque a pureza de Hero. Cláudio, facilmente influenciado por sugestões alheias, a abandona, sentindo-se traído. Benedick e Beatrice, que, nesse momento, já foram obrigados a admitir que não se odeiam tanto quanto haviam dado a entender anteriormente, se unem para limpar a honra de Hero e se certificar que todos tenham um final feliz, inclusive eles mesmos e todos se casam no final.

Jane Austen
Sai, perseguido por um urso: Edição Beatrice e Benedick

Assim como “Muito Barulho Por Nada”, “Orgulho e Preconceito” também possui um casal principal — Elizabeth e Darcy — que se estranha e tem vários diálogos combativos e um casal secundário — Jane e Bingley — que se apaixona com mais rapidez. As semelhanças não se restringem à estrutura dos casais, e se estendem também à caracterização dos personagens: Elizabeth e Beatrice são sarcásticas, têm línguas afiadas e as duas sentem alguma aversão ao casamento; Darcy e Benedick são homens exigentes que esperam encontrar em uma única mulher uma série de características que eles consideram desejáveis e acabam se surpreendendo quando se apaixonam por pessoas diferente do que imaginavam; Jane e Hero são jovens doces que não conseguem imaginar o pior de ninguém; Bingley e Cláudio são facilmente influenciados e maleáveis, o que os leva a abrir mão de Hero e Jane em momentos chave das histórias.

A comédia de Shakespeare também se assemelha ao livro de Jane Austen em termos estruturais. Shakespeare, utilizando uma tradição da comédia romana — lembrem-se: nada é original —usa, em várias de suas peças, festas e danças como momentos em que as pessoas se disfarçam e ouvem conversas alheias, causando toda sorte de confusão. Em “Orgulho e Preconceito”, é durante um baile que Elizabeth escuta, por acaso, as palavras de Darcy sobre sua aparência “tolerável” e começa a nutrir sua aversão por ele.

Jane Austen

Como nas comédias de Shakespeare, Austen garante finais felizes a todas suas heroínas, terminando suas histórias com vários casamentos — o que, é claro, é julgado por críticos de Austen como uma prova de que ela escrevia uma literatura menor, “livros para mulherzinhas”. Essa, entretanto, nunca parece ser uma consideração feita quando se fala nas comédias shakespearianas.

O que tanto Shakespeare quanto Austen estavam interessados com a comédia não era dar finais açucarados para apaziguar um público feminino. Darcy, Elizabeth, Beatrice e Benedick, começam suas histórias como pessoas cheias de falhas — algo que já está em evidência desde o título do romance de Austen — e, ao final de uma longa jornada, eles amadurecem e se tornam pessoas melhores prontas para compartilhar a vida com outrem. Os casamentos ao final de “Muito Barulho por Nada” e “Orgulho e Preconceito” não são sobre encontrar as pessoas que se completam, mas as pessoas que se desafiam, se respeitam como iguais e crescem juntas. E isso é algo que vale a pena ser repetido em 2017.

P.S.: Depois de terminar esse texto, vi que a frase escolhida pelo Banco da Inglaterra para acompanhar a imagem de Jane Austen na nova nota de 10 libras foi “I declare after all there is no enjoyment like reading!” (Eu declaro que afinal não há nenhuma diversão como a leitura!) que pode parecer uma ótima citação se você desconsiderar o fato de ela ser dita por uma personagem que tem zero interesse em ler, o que nos mostra que a ironia de Austen ainda está bem viva 200 anos depois da sua morte e eu aposto que que ela deve estar rindo, onde quer que ela esteja, das pessoas que são incapazes de entender seu senso de humor.

Texto originalmente publicado em Medium.

Autora convidada: Glênis Cardoso faz filmes, textos, listas, vídeos e ainda não sabe o que quer ser quando crescer. Fundou e organiza o Verberenas, site sobre cultura audioviusal pela perspectiva de realizadoras de cinema.

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