[CINEMA] Valerian e as Cidades das Mil Desesperanças

[CINEMA] Valerian e as Cidades das Mil Desesperanças

Tudo bem que a história original em que se baseia Valerian e as Cidades dos Mil Planetas (Luc Besson, 2017) foi escrita em 1967, uma criação em histórias em quadrinhos (HQ) do escritor Pierre Christin e do desenhista Jean-Claude Mèzières, todos franceses, com o nome de Valerian: agente espaço-temporal. Nessa época, uma história de ficção científica criada por dois homens, ainda que ambientada no século XXVIII, no caso em 2750, poderia não ser muito diferente em relação ao papel da mulher no mundo, do que era na época e ainda é até hoje, em alguns aspectos.

No entanto, é desesperançoso para nós mulheres pensarmos que o futuro imaginado na ficção nos reserva o mesmo lugar que ocupamos hoje, excluídas do protagonismo social. O pior é perceber que um diretor como Luc Besson, famoso por filmes com personagens femininas fortes, como O quinto elemento (1997), Joana D´arc (1999) e Lucy (2014), tenha levado a cabo um filme de 177 milhões de dólares (um recorde do orçamento francês) que nem sequer passa no Teste de Bechdel: duas mulheres com nomes próprios, que falam entre si sobre outro assunto que não seja homens. Besson poderia ter optado por dar mais protagonismo ou espaço para mais mulheres no filme. Mas, ele preferiu seguir a história que inspirou sua infância.

Valerian

O filme traz apenas dois personagens femininos com nomes: Laureline (Cara DeLevigne) e Bubble (Rihanna), que em sua forma original nem temos certeza se é uma mulher, mas que sofre exploração sexual como se fosse.

E elas, mesmo quando estão juntas no mesmo cenário, não conversam entre si, apenas falam com Valerian ou um oficinal militar. Nem sequer fica claro se Bubble é o nome da alienígena ou só a denominação da espécie. No comando da cidade Alpha, onde se reúnem culturas de várias galáxias, também há uma mulher entre os outros soldados, mas, ela não contracena com outras mulheres.

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Logo no começo do filme, quando a cidade Alpha surge, vários líderes mundiais, a maioria homens, cumprimentam o comandante do local. Em seguida, quando a grande estação espacial se torna um lugar de mil planetas, as criaturas extra-terrestres que aparecem podem ser quase todas identificadas com o que concebemos como “masculino” e, outra vez, temos poucas líderes mulheres aqui e em outras galáxias.

Mas a pior parte é, sem dúvida, quando Valerian (Dane DeHann) vai em busca de uma espécie extra-terrestre chamada Bubble que pode ser transformar em qualquer ser vivo. O herói precisa se disfarçar de outra espécie para entrar em um lugar proibido para estrangeiros e encontrar sua parceira, Laureline, que havia sido sequestrada.

Valerian

Nesse momento, Valerian caminha por uma espécie de puteiro intergaláctico, onde aparecem várias espécies que poderíamos considerar femininas oferecendo seus “serviços” ao galante mocinho, que recusa todas as ofertas.

Então, ele encontra um tipo cafetão (Jolly, the Pimp/Ethan Hawk) que jura que Valerian vai ver o show da vida dele e leva-o para dentro de um local, onde uma alienígena Bubble (Rihanna) começa uma dança onde aparecem todos os estereótipos sexuais relacionados à mulheres, como por exemplo, a femme fatale, a enfermeira, a dançarina, a dona de casa e até uma colegial estilo Lolita, que poderia ser chocante, não fosse o fato de Luc Besson também ter uma queda por meninas menores de idade.

Em 1991, quando o diretor tinha 32 anos, ele se envolveu com a atriz Maïwenn Besco, de 15, que ficou grávida. A cena de Rihanna é longa e incomoda especialmente quando pensamos que o que vemos na tela bate de frente ao que viemos lutando há anos contra a representação objetivada e sexualizada da mulher.

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Há um consenso de que a primeira história de ficção-científica, Frankenstein (1818) foi escrita por uma mulher, Mary Shelly. No entanto, a ficção científica configura-se como um gênero escrito por homens, lido/visto por homens e protagonizados por homens.

A pesquisadora espanhola Cristina Amich Elías aponta alguns motivos. As mulheres produzem menos ficção científica talvez pelo fato de que o conhecimento tecnológico esteja associado aos homens. Por isso, as personagens femininas das primeiras histórias, quando existentes, eram construídas segundo coordenadas misóginas e sexistas, relegadas a comparsas de ação e papéis tradicionais. O pior é que a ficção científica é um gênero onde se pode questionar as construções políticas, sociais e econômicas e Valerian não faz isso.

Valerian

No cinema de ficção científica, os papéis femininos eram quase sempre os mesmos: a virgem tímida que precisa ser resgatada, a rainha das amazonas que exemplifica o perigo da independência sexual, a científica solteirona e frustada, a boa esposa, a irmã mais nova e masculina.

A ruptura desses papéis dá-se exatamente com Alien, O Oitavo Passageiro (Ridley Scott, 1979), protagonizado por Sigourney Weaver. A filósofa italiana Rosi Braidotti afirma que a ficção científica requer mais imaginação e mais igualdade sexual para chegar a uma nova representação da humanidade pós-moderna ou nem mesmo a tecnologia será útil neste sentido.

A personagem de Cara DeLavigne tem alguns momentos em que se mostra forte, independente e corajosa. Ela é um excelente piloto e entende de eletrônica. Mas, o que aporta ao filme desde de uma perspectiva feminista é muito pouco perto de todo o estrago que a história pode provocar.

Laureline não deveria ser a única mulher forte, independente e corajosa, na cidade dos mil planetas. Mas, é essa a impressão que o filme passa. O principal problema é que mostrar que, no futuro, o papel social da mulher continua sendo secundário e pouco importante vai contra todo o movimento sobre igualdade de gênero que tentamos impulsionar.

A Organização das Nações Unidas (ONU) promove a paridade de gênero em vários setores para 2030. Não podemos pensar que em 2750, nada de nossa luta terá valido à pena. Por outro lado, mostrar culturas intergalácticas que tratam a “mulher” exatamente como nossa sociedade atual é naturalizar a dominação masculina como se não fosse uma criação do nosso planeta, da nossa sociedade, mas, algo universal. Ou seja, mais desesperançoso, impossível.

No mais, o filme tem uma visualidade intrigante, embora mostre exageradas semelhanças com Avatar (James Cameron, 2009) e Star Wars (George Lucas, 1977-2019).  No entanto, o casal protagonista não tem a química necessária para que o filme se torne interessante.

Além disso, alguns personagens alienígenas poderiam ser divertidos e não são. A maioria das piadas são sem graça e o filme perde em muitos aspectos. Mas, o pior mesmo é que a história nos transporta para um mundo onde nós mulheres seguramente não gostaríamos de viver.

Precisamos de mais mulheres escrevendo, filmando, dirigindo e protagonizando ficção científica!

Fontes:
  1. Braidotti, Rosi (2003). Un ciberfeminismo diferente. Rebelion.org.
  2. Elías, Cristina Amich (2007). Gênero e estereótipos nas séries televisivas de ficción científica. Outra Travessia, 6, p. 157-165. Florianópolis.

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Apaixonada por tudo relacionado ao cinema e ao audiovisual. Gosta principalmente de ver mulheres fortes e felizes nas telonas e nas telinhas. Por isso, depois de trabalhar muitos anos em televisão, decidiu estudar mais sobre o assunto e fez um doutorado no tema pra ajudar na reflexão do papel da mulher no cinema, e poder dividir opiniões e pensamentos com mais apaixonadas/os como ela.
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