[CINEMA] “Nada” e “Peripatético” foram os grandes filmes do primeiro dia da mostra competitiva no Festival de Brasília (crítica)

[CINEMA] “Nada” e “Peripatético” foram os grandes filmes do primeiro dia da mostra competitiva no Festival de Brasília (crítica)

Curioso que o ponto alto da primeira noite de exibição dos filmes da mostra competitiva do 50° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tenha sido dois curtas-metragens: “Nada” (2017) de Gabriel Martins e “Peripatético” (2017) de Jéssica Queiroz. O primeiro, uma produção mineira, o segundo, paulista. Cada um a sua maneira reflete sobre a circulação de jovens no espaço urbano e suas angústias em relação ao futuro.

“Nada” teve sua estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes e após passar pela 10° Edição de Cinema Negro Zózimo Bulbul, aporta no Festival de Brasília. Em “Nada” somos apresentados a Bia (Clara Lima) que acaba de completar 18 anos. Com a chegada da maioridade, entra em cena também a famigerada pergunta: “para qual carreira acadêmica você fará a prova do Enem?” Mas Bia tem outros planos. Pretende passar o ano vindouro viajando e amadurecendo essa escolha que carrega um enorme peso social.

A pergunta que leva à resposta que dá título ao filme é feita pela coordenadora da escola, interpretada pela excelente atriz Karine Teles, que diariamente visita as salas de aula inquirindo os alunos sobre a realização da inscrição para a prova. Atentem para a caracterização espetacular desta personagem: vestida como uma atendente de lanchonete, com um microfone sem fio acoplado ao seu corpo apresentando constante microfonia, a coordenadora caminha pela sala, perguntando um a um dos alunos, para que área fará a prova. De repente, para a surpresa de todos, chega a vez de Bia e ela, com uma expressão de enfado, solta um sonoro “nada”.

 

É a partir desta angústia de Bia, com o que está por vir, que vai se desenhar esse excelente curta de Gabriel Martins. Em apenas 27 minutos há uma gama de cenas memoráveis e que já merecem estar no panteão de cenas do ano do cinema nacional. Ressalto, por exemplo, a cena do jantar de aniversário de Bia que, contra a sua vontade, ganha bolo e presentes de seus pais. Os diálogos entre Bia e seus pais sobre seu futuro profissional, aliados a uma atuação inspirada de Clara Lima, nos colocam no seio daquela família que tem em Bia a esperança de, pela primeira vez, terem um membro na universidade.

Para além de todo o debate social sobre as mudanças que o nosso país vem experimentando, o filme consegue mesclar os drama da personagem através da ironia, com alívios cômicos que perpassam toda a narrativa. Mérito de um roteiro que faz a trama transcorrer com fluidez, sem jamais perder o ritmo, e da direção segura que costura as imagens numa montagem afinadíssima. Destaque-se ainda o trabalho de som e a trilha sonora que conjugadas culminam numa cena espetacular em que Bia recita a letra de uma música que emula toda a poética do filme.

Em “Peripatético”, Jessica Queiroz também trabalha em seu roteiro também a questão da chegada da idade adulta, porém em outra chave. Conhecemos os três amigos Simone (Larissa Noel), Thiana (Maria Sol) e Michel (Alex de Jesus) que vivem na periferia da cidade de São Paulo e dialogam constantemente sobre o futuro. Simone procura o primeiro emprego e a cena inaugural do filme é sua caminhada após uma entrevista frustrada. A forma lúdica com que os pensamentos da personagem e os conflitos da própria cidade vão sendo apresentados em forma de animações que ganham vida no muro, abre o filme de forma grandiosa.

Thiana tenta passar no vestibular de Medicina e passa o filme todo abdicando de coisas e de tempo livre em busca de materiais de estudo e cursos. Michel, assim como a Bia do curta de Gabriel Martins, ainda não sabe o que fazer e passa os dias jogando videogame. Esses 3 personagens lidam de forma diferente com suas expectativas de futuro e este é um dos méritos do roteiro de Ananda Radhika que em momento algum resvala no lugar comum.

O que mais chama a atenção neste filme é a excelente direção de arte de Dicezar Leandro, alinhavada pela montagem de Ana Julia Travia, além de alguns planos sequência que acompanham os três jovens em andanças pela cidade. Uma cena catártica é magnificamente conduzida pela personagem Simone, na qual o espectador é confrontado a imergir na narrativa, convidando-nos a tomar parte de um evento histórico ocorrido na cidade de São Paulo, em maio de 2006, que culminou no genocídio de moradores da periferia, sobretudo negros.

Outro momento que merece ser sublinhado é uma cena na piscina que através do simbolismo realça como os diferentes pontos de partida de cada pessoa podem ser decisivos na meta almejada. Por esta cena dirigida com maestria por Jéssica Queiroz, o filme já merece uma atenção especial, sendo a diretora uma daquelas que devemos colocar no radar para acompanhar os próximos trabalhos.

O destaque destes dois filmes nesta primeira rodada da mostra competitiva se dá, sobretudo, pelo fato de conseguirem alinhavar imagens esteticamente interessantes e interessadas de forma a driblar um formalismo que muitas vezes não dá conta de elaborar novas narrativas. Ao se travestir de velhas roupagens exuberantes do ponto de vista formal, aquele velho modo de fazer cinema apoiado tão somente na métrica e numa estética já consagrada, acaba se esvaziando em termos de produzir novas sensações, subjetividades, reflexões e significados.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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