Twin Peaks: o ser e o tempo nos caminhos que se bifurcam

Twin Peaks: o ser e o tempo nos caminhos que se bifurcam

Iniciar uma crítica sobre algum filme do David Lynch é sempre uma tarefa difícil. Iniciar uma crítica sobre Twin Peaks parece ser pior ainda. Isso porque Lynch e Frost conseguiram criar uma série com um universo tão intricado, complexo e polissêmco que Twin Peaks nunca cessará de fornecer sentidos dos mais diversos, mesmo que nunca mais venha a ter novos episódios. Acredito que seja sempre essencial ressaltar em textos referentes a essa obra que, para tentar entender (ao menos um pouquinho) da narrativa da série, é preciso abandonar interpretações rígidas e literais, e ainda mais, é preciso olhar com cuidado a sua forma, os elementos estruturantes da linguagem que fazem de Twin Peaks tão peculiar – ao combinar de modo certeiro a linguagem do cinema com a da TV –, afinal, como já disse André Bazin, “saber como o filme nos diz alguma coisa é mais uma maneira de compreender melhor o que ele quer nos dizer”.

O ambiente criado para o universo de Twin Peaks quando a série foi ao ar nos anos 90 apresentava um tom diferente do que vimos nesta terceira temporada. Lynch já explorava, anteriormente, as possibilidades técnicas do vídeo para a televisão, e há 25 atrás deixou uma marca positiva no pensar o cinema e a TV como um meio híbrido quanto a linguagens, meios que podem conversar entre si.

Já em 2017, o diretor, apesar das evoluções no campo de CGI, apostou em uma estética que de certa forma retoma a identidade da série, mas não a torna ultrapassada. Entre o surrealismo e o expressionismo alemão, seus simbolismos oníricos contam com eixos inclinados e descentralizados, desfigurações, cortes secos e rápidos, sobreposições, jogos de claro e escuro. Twin Peaks pode ser considerada, esteticamente, uma obra de arte da televisão.

No seu conteúdo, a série parte de uma premissa simples – a morte de Laura Palmer (Sheryl Lee). Nas duas primeiras temporadas o Agente Cooper (Kyle MacLachlan) tinha como objetivo descobrir, de formas não muito ortodoxas (vide o método tibetano), o assassino de Laura. O desenrolar desse evento revela um mundo sobrenatural habitado por forças do bem e do mal, no qual a terceira temporada buscou explorar de forma mais abrangente, e assim mostrando que na verdade o assassinato de Laura foi o desencadeador de uma realidade onde as forças malignas prevalecem. A missão do Agente Cooper é agora não mais descobrir algo, mas consertar, encontrar Laura, salvá-la do mal – conhecido primeiro como Bob e depois Judy –, e o caminho para isso é através do tempo.

Cooper primeiro viaja para 24 de fevereiro de 1989 para salvar Laura de seu terrível destino. Mas o ponto principal é mesmo saber se Cooper salva Laura? Ou é mais relevante pensar nisso tudo como um ciclo? O papel de Cooper será sempre tentar salvar Laura ou o que Laura representa?

Retomando o que conhecemos da personagem das temporadas anteriores, entendemos que Laura era uma jovem problemática e confusa (mantinha vários segredos da família e amigos), mas ao mesmo tempo mantinha uma certa inocência, alguém facilmente influenciável.

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Laura traz um caráter ambivalente para pensarmos a história e todos seus personagens, mostrando que dualidades são inerentes ao ser humano, ao ponto de, em Twin Peaks, serem corporificadas: temos então Mr. C ou Evil Cooper, Dougie e/ou Agente Cooper.

Twin Peaks se abre, então, aos questionamentos metafísicos. Entre a realidade e esse universo onde vivem essas forças sobrenaturais, e principalmente a partir dessa última temporada, é possível conceber que o Red Room/Black Lodge/White Lodge, são espaços ubíquos, desespacializados e atemporais. Mas nem por isso significa que seja menos real que a própria realidade, pelo contrário, faz-nos pensar se a própria realidade nos mostra o que é verdadeiro.

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Twin Peaks, The Return Parte 17 (Reprodução)

Se a história de Twin Peaks extrapola linhas espaciais e temporais, se na verdade o que nos é apresentado é um ciclo, o que é real? Se “o passado dita o futuro”, o que é o passado e o é o futuro? E onde fica o presente?

Assim como em Jardim de Caminhos Que Se Bifurcam, começamos a compreender a dimensão multiforme e labiríntica da narrativa de Twin Peaks. O conto de Borges se passa durante a Primeira Guerra Mundial e apresenta a história de Yu Tsun, um espião da Alemanha, que está fugindo do Capitão Madden, seu inimigo. Ainda que Yu Tsun aceite o seu destino, já que sabe que não conseguirá se safar de Madden, antes de ser capturado garante que o exército alemão fique sabendo da localização do novo parque de artilharia britânico. Para conseguir passar essa informação de forma segura aos alemães, o espião vai até Ashgrove para então encontrar Stephen Albert, que mora em uma casa no centro de um labirinto em formato de jardim. Coincidentemente (ou nem tanto), o avô de Yu Tsun foi um governador chinês que abandonou a profissão para escrever um romance e construir um labirinto. O labirinto nunca foi encontrado e seu romance não faz sentido, tornando-se um mistério a todos. Um mistério que mais tarde será desvendado por Stephen Albert, e revelado a Yu Tsun, através de um trecho de uma carta deixada pelo seu avô antes de morrer, que dizia: “Deixo aos vários futuros (não a todos) o meu jardim de caminhos que se bifurcam”.

“Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’sui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance, Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts’sui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo.”, diz Albert a Yu Tsun.

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Twin Peaks, The Return Parte 18 (Reprodução)

O jardim na verdade é o romance apresentado não linearmente, escondendo um “invisível labirinto de tempo”, com “infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.”.

Voltando a Twin Peaks, podemos questionar, na representação multifacetada do personagem vivido por MacLachlan entre Mr. C/Evil Cooper, Dougie e o Agente Dale Cooper, como a representação de tempos. Evil Cooper é um ser sempre focado no agir, no futuro, sempre à procura de algo que está por vir.

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O Agente Cooper é um ser que tem o propósito de desvendar [e arrumar] o passado. Já Dougie se mostra um ser espontâneo, instintivo, intuitivo, o que o coloca no presente. Longe de procurar traçar um eixo moralista, mas em uma realidade (se é que ela ainda existe) em que o mal prevalece, um dos poucos personagens com final feliz foi Dougie.

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Twin Peaks, The Return Parte 05 (Reprodução)

Não há como negar a genialidade de Lynch como diretor, ainda mais em se tratando de Twin Peaks, uma série que, além dos vários elogios quanto sua forma e conteúdo já mencionados aqui, consegue conversar de maneira sutil e harmoniosa com as outras produções do diretor, sem apagar a ambiência da série e adicionando ainda mais camadas de significado.

No entanto, como tudo na arte, e no processo de reflexão da mesma, percebemos problemas. O que mais se destaca se refere a representação da mulher e a exploração do corpo feminino na tela (que já rendeu artigo próprio no site, e você pode conferir aqui).

Como fã da série admito sentir uma certa tristeza ao pensar que, provavelmente, não teremos mais novos episódios de Twin Peaks. Mas procurando um distanciamento para refletir sobre o desenvolvimento e desfecho da série, entendo que a série está completa. E por completa quero dizer uma obra aberta, conceito de Eco.

A visão de Twin Peaks presente nesse texto é somente um, dentre uma pluralidade de sentidos que já foram apontados por outras críticas e ainda serão especulados em fóruns do Reddit afora. A série de Lynch e Frost se consagra nessa temporada final como uma obra que desafia o espectador a cada novo olhar e, principalmente, se transforma a cada diferente intérprete. Esse é o segredo de sucesso para fazer uma série voltar a ativa 25 anos depois: não a termine.

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Publicitária, mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, feminista, apaixonada por arte e vivendo um caso particular de amor com o cinema.
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