[CINEMA] Café com Canela: sobre afetos curativos (crítica)

[CINEMA] Café com Canela: sobre afetos curativos (crítica)

Café. Encontro. Perda. Afeto. Reencontro. Leveza. Ancestralidade. Alegria. Solidão. Vida. Fantástico. Solidariedade. Cinema. Espelho. Com. Amor. Cerveja. Andar de Bicicleta. Sororidade. Canela. Essas palavras conjugadas constroem a poética de Café com Canela.

Primeiro longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa, Café com Canela é um filme que se revela de forma háptica, ou seja, refere-se à percepção tátil, do tato, do toque: um filme para sentirmos na pele, muito mais do que ser fruído apenas na chave óptica. Está para o tato, assim como a óptica está para a visão, como diria a crítica Carol Almeida em seu texto sobre a proposta de uma cinefilia feminista lido no painel das Elviras – Coletivo de Mulheres Criticas de Cinema, durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Trata-se de um filme sobre reencontros e sobre reencontrar-se. Sobre pertencimento. Sobre libertar-se de memórias que doem, que sangram, que dilaceram. Os tempos, assim como a montagem do filme, são picotados e os diretores experimentam esses saltos temporais com a própria câmera e seus diferentes pontos de vista, brincando com sons e imagens. O jogo, proposto por Glenda e Ary, nos convida de forma adocicada a conhecer seus personagens que, apesar de terem seus arcos de desenvolvimento próprios, terão suas narrativas entrelaçadas por afetos. Às vezes violentos, às vezes carinhosos, mas sempre amorosos.

A primeira cena utiliza um filtro e um ratio de câmera a nos situar que a festa de aniversário de cinco anos de Paulinho dá-se no passado. Margarida (Valdinéia Soriano) e Paulo, pais do menino, tentam, sem grande sucesso, registrar aquele momento com uma câmera caseira, e é deste ponto de vista que o filme é apresentado.

Assim como no curta-metragem Aniversário do Pedro, dirigido por Cíntia Domit Bittar, um alerta de situação traumática está por vir, quando a fita que registrava a festa acaba antes do apagar das velas. Após este passeio da câmera por aquela festinha infantil, saltamos no tempo e os personagens estão na laje da casa de Violeta (Aline Brunne) que ao lado de seus filhos, do marido e dos vizinhos e amigos Margarida, Cidão (Arlete Dias) e Ivan (Babu Santana) conversam animadamente sobre amenidades. A conversa gostosa daquelas pessoas carismáticas ganha o espectador nos primeiros minutos de projeção. A forma como os personagens estão dispostos e o fato de estarem conversando sobre um passado próximo, emula uma atmosfera similar a do francês Retorno à Ítaca (2014) de Laurent Cantet; e do cubano Os últimos dias em Havana (2015) de Fernando Perez.

Apesar de toda a alegria e vivacidade compartilhada pelos vizinhos de cidades do Recôncavo Baiano, algumas dores e fissuras na vida de Violeta e Margarida vão sendo apresentadas. Ao contar essa história, a direção de arte, que também é assinada por Glenda Nicácio, se apoia em elementos do cinema fantástico, para criar uma casa que ao mesmo tempo serve de refúgio para Margarida, mas também a oprime, pois guarda memórias do filho que perdeu.

Plantas brotam das paredes, que por vezes sangram e aumentam ou diminuem de tamanho, de acordo com os sentimentos desta mulher. Essas metáforas da casa que se transforma para, de alguma forma, consumir a personagem, que passa por um período de vulnerabilidade, nos remete a O Babadook (2014), filme de terror psicológico escrito e dirigido pela australiana Jennifer Kent, além do curta-metragem Um Ramo (2007) de Juliana Rojas, que trata da inércia de uma mulher que precisa conjugar sua subjetividade e o casamento.

No entanto, é no reencontro afetivo de Margarida e Violeta, que fora sua aluna quando criança, que uma transformação se dá. A direção de atores é algo que merece ser ressaltado, uma vez que há uma conjunção de atores profissionais e não profissionais atuando com tamanha fluidez, que realça ainda mais a excelente preparação do elenco e o roteiro. A construção de cada personagem é da ordem do sensível, já que até os mais coadjuvantes têm seus momentos de apogeu dentro da narrativa, sendo impossível não mencionar todas as cenas em que a fabulosa Cidão está em quadro.

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O poder curativo visto na tela, permeado por este encontro entre Violeta e Margarida, alcança também a plateia que se sente contemplada ao poder ver no cinema um elenco majoritariamente de pessoas negras, em que a questão étnico-racial não é um elemento do roteiro. Os personagens são médicos ou professores, e suas subjetividades são largamente trabalhadas, sem que estejam a serviço do arco narrativo de pessoas brancas, como visto, por exemplo, em Vazante (2017) de Daniela Thomas, exibido no primeiro dia da Mostra Competitiva do 50° Festival de Brasília.

Numa cena belíssima em que Margarida conta para Violeta o que sente ao ir ao cinema, a quarta parede é quebrada e convida o espectador a refletir sobre o que costumeiramente vemos na tela grande. As sutilezas circunscrevem o roteiro de Café com Canela, como um desejo pulsante sobre uma possibilidade de existência em meio a tantas dores que a vida muitas vezes impõe. É importante ressaltar que a produção destas imagens é um acalanto dentro de uma historiografia do cinema brasileiro, em que raramente essa imagética é produzida. Não à toa, o filme foi ovacionado, no Cine Brasília completamente lotado, com aplausos que perduraram todo o tempo dos créditos, sendo o grande favorito ao prêmio do público.

https://www.youtube.com/watch?v=db6TyK18uiU

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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