Feito na América: a realidade da ausência feminina nas histórias contadas

Feito na América: a realidade da ausência feminina nas histórias contadas

A comparação entre Top Gun (Tony Scott, 1986) e Feito na América (Doug Liman, 2017) é quase inevitável. Em algumas cenas, parece que quem está pilotando os aviões é o personagem da Navy Fighter Weapons School, Pete “Marerick” Mitchell. Mas é o mesmo Tom Cruise, 31 anos depois das façanhas aéreas dos ases indomáveis, que embora não tenham seduzido a crítica, foi um grande sucesso de bilheteria Na época, arrecadou cerca de 350 milhões de dólares em todo o mundo. E parece que a continuaçõ volta em 2018, com Top Gun 2.

[Contém spoilers] Mas, vamos aos fatos: Feito na América (no original: American Madeconta a história real do piloto americano Barry Seal, que trabalhava para para a aviação comercial e recebeu um convite da CIA (há controvérsias) para fazer fotos aéreas de campos de treinamento, do que chamavam “rebeldes esquerdistas”, na América Latina. Logo, ele passou a traficar cocaína em quantidades exorbitantes para o cartel de Medellín. A droga ia da Colômbia para os Estados Unidos, e Barry ganhou a confiança dos chefes do tráfico, como Pablo Escobar e Jorge Uchoa.

Em seguida, Barry começou a traficar armas para os Contras, que lutavam contra o regime Sandinista, na Nicaragua e, inclusive, construiu um campo de treinamento para os rebeldes em sua propriedade, na pacata cidade de Mane, no estado de Arkansas; tudo isso debaixo do nariz do então governador do estado, Bill Clinton.

Feito na América
Família de Barry e Debbie Seal.

Após ser preso pelo FBI, pela CIA e pela DEA (Agência de controle das Drogas), Seal é chamado pela Casa Branca para ser informante do governo americano e consegue provas fotográficas contra o cartel de Medellín. Após ser condenado a apenas cumprir serviços comunitários, Barry é assassinado por bandidos contratados pelo cartel colombiano, segundo reza a lenda.

Todas essas aventuras aconteceram devido à sua incrível habilidade de voar e despistar as autoridades, seja de que país fossem. E é uma história incrivelmente real, que merece ser contata, apesar de que o filme romantiza a vida do protagonista. Parece que vale à pena ser um traficante internacional de drogas e armas, que é uma aventura e tanto. O personagem é representado com um exagero de ingenuidade também.

A representação feminina em Feito na América

Seal era conhecido na vida real como “El Gordo”. Cruise assume toda a simpatia e o carisma que dizem que o verdadeiro Seal tinha. Só não adquire as características físicas. Ou pelo menos, nada além de perder um dente. Feito na América mistura muita adrenalina e sequências envolventes e divertidas para mostrar uma inacreditável história real. Até aí, tudo bem. Mas, através de um ponto de vista feminista, as mulheres representadas no filme ocupam um papel quase insignificante.

A principal delas é Lucy Seal, esposa de Barry, interpretada pela loira Sarah Wright, que não lembra em nada a verdadeira esposa (Debbie Seal) do verdadeiro gordinho Seal. Debbie Seal tinha cabelos e olhos escuros (como podem ver na foto acima).

Mas é assim mesmo. A marca Hollywood exige que os mocinhos sejam galãs e as mocinhas-troféus sejam loiras que se emocionam com muitas notas de dólares. Em uma das cenas, o personagem de Seal lança dinheiro em direção a sua mulher para que ela possa comprar eletrodomésticos. Ela aceita as explicações estapafúrdias do sujeito e apenas limita-se a perguntar se o dinheiro é “legal”.

Feito na América
Berry (Tom Cruise) e Lucy (Sarah Wright)

Outras personagens femininas que aparecem em Feito na América é a promotora, Dana Sibota (Jayma Mays), que tenta, sem êxito, condenar Barry Seal como traficante de drogas; e uma das filhas do casal, que chama-se Cristina e possui apenas uma pequena fala. Temos também Judy Downing (Lola Kirke), a esposa do xerife da cidade, onde aparece no filme apenas para perguntar se não é estranho o tal do Barry ter tanto dinheiro. O xerife Downing (Jesse Plemons) responde que não, que Seal é um bom cidadão e ajuda à comunidade.

Nenhuma dessas mulheres conversam entre elas, o que logicamente não permite que o filme seja aprovado no teste de Bechdel-Wallace (para ser aprovado, o filme precisa ter duas mulheres, que tenham nomes e conversem entre si, sobre algum assunto que não seja homens).

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A relação entre Top Gun e Feito na América

Top Gun é uma ficção e, como tal, recebeu críticas relacionadas à representação feminina. Para o filósofo americano, Douglas Kellner, o filme versa sobre o poder fálico, as ameaças aos valores masculinos das décadas de 60 e 70, e a reafirmação desses valores na década de 80. Ser um ás significava ser um super garanhão e um super piloto, duas características que estão juntas durante todo o filme.

Assim, quando o protagonista consegue sair bem nas suas façanhas aéreas, ele conquista a mocinha, no caso, a instrutora da escola dos ases indomáveis, Charlie Blackwood (Kelly McGillis). Quando não consegue, ela o abandona. Quando ele triunfa no final, ela está presente para validar essa vitória. Top Gun está cheio de imagens sobre a potência masculina. Para Kellner, o filme representa o medo de que o poder masculino seja ameaçado pelas mulheres na sociedade atual, e realiza um resgate dos privilégios dos meninos.

Feito na América
Charlie (Kelly McGillis) e Maverick (Tom Cruise) em “Top Gun” (1986)

Feito na América mostra esse poder masculino, evidencia que o mundo em que vivemos ainda é dominado por homens que querem glória, dinheiro e poder, não importam os meios. Eles estão, inclusive, acima das leis que eles próprios criaram. O filme mostra que o que sabemos sobre política, guerras e tráfico é muito menos do que chega até nossas televisões através da imprensa, também, majoritariamente conduzida por homens. Existe um mundo de homens “brincando” de mocinhos e bandidos na nossa vida real, e nós estamos à mercê deles.

O atual presidente americano, Donald Trump, ameaçou acabar com a Coreia do Norte. Ele tem as bombas dele, assim como o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Nós temos o nosso medo. Que outros enredos secretos estão escondidos nestes novos tramas da vida real e que nós não conhecemos?

É verdade que Feito na América é um bom passatempo, distrai e faz rir em alguns momentos. Mas, se pensarmos um pouco mais a fundo na “realidade” que estamos vendo, temos a certeza de que o mundo deve mudar, e nós, mulheres, precisamos ser agentes dessa mudança sempre.

Fontes:
  1. Catanzaro, Ariadne (2009). Depois do Jogo, antes do jogo. Um estudo de Corra Lola Corra. Tese de Mestrado. Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo. Disponível em http://tede.anhembi.br/tedesimplificado/bitstream/TEDE/1425/1/366069.pdf
  2. Kellner, Douglas (2001). A Cultura da Mídia – Estudos Culturais: Identidade e Política entre o Moderno e o Pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC.

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Apaixonada por tudo relacionado ao cinema e ao audiovisual. Gosta principalmente de ver mulheres fortes e felizes nas telonas e nas telinhas. Por isso, depois de trabalhar muitos anos em televisão, decidiu estudar mais sobre o assunto e fez um doutorado no tema pra ajudar na reflexão do papel da mulher no cinema, e poder dividir opiniões e pensamentos com mais apaixonadas/os como ela.
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