Quem Matou Eloá: a perspectiva feminista na análise de um crime

Quem Matou Eloá: a perspectiva feminista na análise de um crime

O documentário de curta metragem Quem Matou Eloá, dirigido e roteirizado por Lívia Perez em 2015, revive um caso emblemático na nossa sociedade. O assassinato da adolescente de 15 anos, Eloá Cristina Pimentel pelo seu ex namorado Lindemberg Alves, após ser mantida em cativeiro por quase cinco dias em 2008. Notem as datas: 2008, 2015. Um crime de 2008 e um filme de 2015 nos ajudam a entender a situação da mulher na sociedade brasileira.

Em 2008 Obama foi eleito presidente dos EUA (tomou posse em 2009), o Orkut era o principal meio de comunicação entre os jovens junto com o MSN. Single Ladies da Beyoncé era o grande hit e as séries Veronica Mars e Cold Case passavam no SBT. O feminismo estava esquecido. Não se falava em relacionamento abusivo.

Hoje se sabe que a adolescente viveu três anos em um. Lindemberg era possessivo e vivia às turras com a namorada. Depois do término, passou a persegui-la e chegou a bater nela. Tudo isso era visto por quem estava em volta como normal.

Quem Matou Eloá

A família não quis registrar ocorrência na delegacia para não atrapalhar o futuro do rapaz, que era trabalhador. Era um rapaz trabalhador e apaixonado. Depois do crime, descobriu-se que o pai de Eloá vivia sob uma identidade falsa e estava foragido da justiça de Alagoas onde era suspeito de quatro assassinatos, entre eles de sua ex mulher. O que pode ser uma explicação para a aceitação do comportamento do rapaz. No universo familiar dela, a hierarquia no relacionamento homem mulher deveria ser naturalizada. Pelo menos pelo pai.

A sociedade complacente observa enquanto meninas crescem valorizando o olhar masculino sobre elas e se submetem a qualquer coisa em troca desse olhar. Eloá tinha 12 anos quando começou a namorar seu assassino. Ainda hoje causa indignação saber que uma criança dessa idade namora um rapaz de 19 anos.

O que ninguém parece querer saber, é por que uma menina de 12 anos já está pensando em ter um namorado. Por que as meninas acreditam que um namorado é a conquista máxima de suas vidas. “Quando eu casar”, “quando eu tiver minha família”, idealiza a menina com um bebê de plástico nos braços. Muito se fala sobre brincar de Barbie, sobre os padrões impostos por essa boneca, mas brincar de casinha é tão prejudicial quanto.

Quem Matou Eloá

Uma criança não tem que andar por aí carregando um bebê imaginário. Um bebê cheio de demandas que “come”, “troca fraldas” e “precisa” ser posto para dormir. Alguns até falam mamãe. Criticamos a Barbie por impor a beleza e a magreza absoluta as mulheres, mas o que essa boneca “faz” é cuidar dela mesma, ir ao salão de cabelereiro, tomar banho de banheira, trocar de roupa, dirigir e sair com as amigas. A dinâmica da brincadeira com uma boneca bebê reproduz um trabalho. A ideia aqui, não é fazer uma defesa da Barbie, mas talvez seja melhor para uma menina brincar com essa boneca, quem sabe um modelo mais realista, com um corpo menos padronizado, do que aprender a cuidar de um bebê aos 6 anos de idade.

Para ter um filho (da maneira tradicional), precisamos de um parceiro e se as brincadeiras infantis reproduzem a maternidade, os filmes, as novelas e os contos de fadas assistidos nos mostram que felicidade e realização é ter um homem interessado na gente. Nós também aprendemos que beijar uma mulher à força é paixão, que ciúme é paixão. “Ele ama tanto que cometeu uma loucura”. Quem matou Eloá não foi suas escolhas ou a permissão que sua mãe lhe deu para namorar. Foi a sociedade.

E por que um rapaz de 19 anos quer namorar uma menina de 12? Para controlar. Uma menina de 12 anos está formando sua autoestima. Provavelmente não está habituada a receber elogios fora do meio familiar e as vezes nem isso. Uma frase muito dita pelos homens nesse tipo de relacionamento é: você é madura para a sua idade.

O homem faz a menina pensar que ela é privilegiada, que ela não é como as outras. Aos poucos o namorado incentiva a dependência emocional. Aquele namoro é a razão de viver da mulher. Ela não tem outro objetivo na vida além de namorar. Não prioriza estudo, não fala em ter uma carreira. Sua vida é uma extensão da vida do namorado. Todos os compromissos sociais são decididos e escolhidos pelo outro.

Quem Matou Eloá

A mulher abandona seus amigos e passa a estar sempre com o namorado e com os amigos dele. Algumas pessoas acham que nem todo relacionamento que envolve dependência emocional é abusivo, mas um parceiro que está vendo que a mulher não se esforça para ter uma rotina independente dele e escolhe aceitar esse comportamento, é abusador.

Pois abuso é todo tipo de controle. O abusador também tem problema de autoestima, ele precisa ser idolatrado, obedecido, respeitado, admirado e sobretudo ouvido. Lembrem daquele namorado vaidoso que está sempre contando histórias, sempre ensinando alguma coisa. Aquele que gosta de uma ouvinte paciente e sorridente.

Hoje em dia discutimos comportamentos que não eram abordados na época do crime. Por isso vale a pena relembrar esse caso sobre a ótica do feminismo. Premiado em festivais de cinema, o filme Quem Matou Eloá muda nossa percepção sobre o caso. Informação é proteção.

Quem sabe se estivéssemos discutindo relacionamentos abusivos em 2008, Eloá poderia estar viva. Não foi coincidência o relacionamento entre ela e Lindemberg ter terminado um pouco depois que Eloá fez amizade com a moça que foi mantida refém junto com ela. Não divulgaremos o nome dessa moça, pois não sabemos como ela se sente tendo seu nome relembrado e vinculado a uma tragédia. E quais as consequências disso na vida dela hoje em dia.

Mas o fato é que, uma amizade ajudou a diversificar os interesses da menina. Mesmo que a amiga não tenha alertado diretamente sobre o namoro, a existência de interesses externos ao relacionamento foi um alento para Eloá. Relembrando o caso, também vemos como a união e a amizade entre mulheres sempre foi importante e nunca incentivada.

Quem Matou Eloá

Vendo o filme entendemos a responsabilidade da mídia no desfecho do caso. Dar voz ao sequestrador é dar poder a ele. Lindemberg chegou a ser entrevistado ao vivo. Quem tem voz, tem moral. Quem tem moral se sente seguro, não quer negociar. Além da integridade de Eloá, a violência contra mulher foi outro aspecto ignorado pela mídia. O filme está disponível no You Tube e é incrível ver que a ampla cobertura do sequestro ignorou completamente o abuso.

Uma mulher estava sendo mantida refém pelo ex parceiro inconformado pelo fim do relacionamento. Pela ótica de quem protege a vítima, um criminoso perigoso estava apontando uma arma para a cabeça de uma mulher para obriga-la a amá-lo.

Obrigar a amar, envolve obrigar a um contato físico e contato físico forçado, é estupro. Eloá corria risco de ser estuprada e morta. Porém, tanto a imprensa quanto a polícia escolheram privilegiar a narrativa dele. Um rapaz apaixonado, trabalhador que estava sofrendo uma desilusão amorosa e fez uma bobagem.

Lindemberg se expôs na janela do cativeiro várias vezes, podendo ser atingido por um tiro à distância, mas a polícia de São Paulo escolheu colocar a integridade do homem na frente da segurança das vítimas. O que matou Eloá foi a hierarquia entre homens e mulheres. O patriarcado.

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Candida Sastre é roteirista de humor e pesquisadora. Escreve artigo e entende dos paranauê acadêmico. Suas inspirações na crítica são Clement Greenberg (amém), Arthur Danto e a rainha Aracy de Almeida. Carioca, mother of cats, diferentona, tinha um blog chamado Sylvia. Faz parte do Gloria Steinem Futebol Clube. Escreve humor porque tem facilidade, mas queria mesmo ser o Daniel MacIvor.
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