Esse Cabelo: memória e resistência na obra de Djaimilia Pereira de Almeida

Esse Cabelo: memória e resistência na obra de Djaimilia Pereira de Almeida

Esse Cabelo: A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras, vencedor do Prêmio Novos – Literatura 2016, é um daqueles livros curtíssimos, mas de impacto descomunal: a autora estreante acalenta a alma do leitor com uma verdadeira prosa poética acerca dos seus anos de menina nascida em Angola, vindo a mudar-se para Lisboa com apenas três anos, lugar onde cresceu e tomou consciência de suas origens com base no fio condutor de suas diversas histórias, seu próprio cabelo.

“’Quem é a Mila? ‘Eu mesma’ não coincide bem comigo. O cabelo corta-se e renova-se prolongando a sucessão dos ciclos, mas tal não é senão uma via de extinção. Cada ciclo do cabelo é somente um ciclo do livro do cabelo. Serei eu (“eu mesma”?) que empresto à sua história importância, contando-a? Pergunto-me como escrever com distância se mexo na memória, mas a distância, apercebo-me então, é condição da memória, não uma moral. Todo o passado é um satélite conveniente.” (página 83)

Djaimilia Pereira de Almeida, em seu primeiro livro, faz diversos recortes sobre a sua luta diária para se autoafirmar como mulher negra desde a tenra idade. A autora desconstrói a ideia popular de que falar sobre cabelos é um assunto desnecessário, uma vez que essa parte tão singular do corpo, seja masculino ou feminino, representa muitas vezes o modo como o mundo nos enxerga – e como internalizamos as crueldades vindas dele.

A autora participou da FLIP (Festa Literária de Paraty) em 2017 e trouxe consigo esse debate tão necessário, principalmente na vida de mulheres cacheadas, crespas ou onduladas que, por conta da pressão da mídia, acabam cada vez mais cedo recorrendo a técnicas de alisamento para enquadrarem-se em um padrão de beleza imposto.

SINOPSE

“O que se passa por dentro das cabeças é mais importante do que o que se passa por fora? Falar de cabelos é sempre uma futilidade? Não necessariamente, até porque, segundo a narradora deste texto belo e contundente, “escrever parece-se com pentear uma cabeleira em descanso num busto de esferovite” e visitar salões é uma boa forma de conhecer países, de aprender a distinguir modos e feições e até de detectar preconceitos.

Esta é a história de uma menina que aterrou despenteada aos três anos em Lisboa, vinda de Luanda, e das suas memórias privadas ao longo do tempo, porque não somos sempre iguais aos nossos retratos de infância; mas é também a história das origens do seu cabelo crespo, cruzamento das vidas de um comerciante português no Congo, de um pescador albino de M’banza Kongo, de católicas anciãs de Seia, de cristãos-novos maçons de Castelo Branco – uma família que descreveu o caminho entre Portugal e Angola ao longo de quatro gerações com um à-vontade de passageiro frequente. E, assim, ao acompanharmos as aventuras deste cabelo crespo – curto, comprido, amado, odiado, tantas vezes esquecido ou confundido com o abismo mental –, é também à história indirecta da relação entre vários continentes – a uma geopolítica – que inequivocamente assistimos.” 

Na obra, Djaimilia narra suas aventuras da infância à idade adulta contando suas experiências (boas e ruins) envolvendo seu cabelo crespo, herdado de seus antepassados africanos. O cabelo funciona como um personagem vivo, que sofre tantos traumas quanto sua própria dona; passando por alisamentos, cortes, penteados e até queimaduras capilares, a autora mostra às leitoras a importância que se deve dar a uma parte de si que reflete não apenas um passado de lutas, mas também sua identidade e a afirmação constante desta.

O tratamento precário dado ao cabelo de Djaimilia logo nos primeiros anos, e vindo de profissionais que deveriam entender de cabelos crespos, demonstra que o racismo e a busca por um padrão de beleza atinge não apenas homens e mulheres negros adultos, como também crianças – e têm o poder de deixar marcas para sempre.

“De Sapadore, volta-me com tonturas de amoníaco descer umas escadas para uma cave exígua de paredes brancas, salão cujo excesso de zelo com a higiene, comum na pobreza, me pareceu aos seis anos luxuoso. Sobra-me pouco mais do que o rosa-choque da embalagem de defrisante Soft & Free (ou seria Dark & Lovely?), anunciando, na variedade infantil, crianças negras de cabelos lisos, risonhas, modelos de vida instantâneos. Publicidade enganosa, perceberia eu no dia seguinte. O tratamento, cuja química abrasiva obriga ao uso de luvas, consistia, segundo me explicaram, em “abrir o cabelo”, torná-lo mais maleável.” (página 24)

Ao passo que crescia, Djaimilia agarrou-se à necessidade de compreender o porquê de seu cabelo ser como era e, acima de tudo, o porquê de as outras pessoas se importarem tanto com o alinhamento de seus fios, não os deixando livres como precisavam ser. A partir do momento em que a menina se dá conta de que o que prevalecia sobre si era a vontade e imposição dos outros, passa a construir gradativamente sua liberdade e autonomia perante sua própria imagem e personalidade.

Porém em 2011, Mila, como ela se refere a si mesma, decide cortar por completo seu cabelo, em uma tentativa de tornar mais prático os cuidados com ele; acabou que o ato inconscientemente serviu de incentivo para que a autora repensasse seu passado e procurasse voltar ainda mais no tempo para saber sobre sua origem, dando início à pesquisa que futuramente serviu de base para a consolidação do livro.

Esse Cabelo
Elizabeth Eckford foi uma das nove estudantes negras cuja admissão no colégio Little Rock Central High School, em 1957, foi ordenado por meio do tribunal federal, devido uma ação legal por parte dos advogados do fundo de defesa legal da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People). Imagem de © Bettmann / CORBIS Little Rock Central High School. (Reprodução)

Duas das passagens mais emocionantes do livro ocorrem quando, ao observar a imagem acima, de Elizabeth Eckford, uma das estudantes negras símbolo de resistência à segregação racial norte-americana, Djaimilia se enxerga, no semblante forte, na tensão dos músculos do braço que seguram o caderno, na extrema confiança ao enfrentar um mar de insultos vindo dos brancos ao redor, possivelmente a primeira noção do significado de representatividade que teve na vida.

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Ao analisar a imagem, lembrou-se de uma colega de escola que comentara “preferir abortar a ter um filho preto”. O segundo momento ocorre quando, ao visitar um salão de cabeleireiros, conhece Lena, uma angolana que pela primeira vez trata seus cabelos com o carinho que mereciam, sem escovas agressivas ou secadores que lhe causaram queimaduras.

Além do racismo, outras pautas feministas são abordadas ao longo dos capítulos que se distribuem pelo livro como crônicas cheias de poesia: o despertar sexual das mulheres na adolescência, a existência e a falta de sororidade e a busca por autoafirmação e representatividade.

A linguagem de Djaimilia é fluida e passa pela mente da leitora como cenas de um filme nostálgico. Apesar de versar sobre um passado cheio de dificuldades, principalmente no que tange sua convivência em sociedade com diversas pessoas cruéis, a prosa da autora é leve, de fácil compreensão e nos incentiva a querer compreender também o nosso passado e as lutas travadas pelas mulheres de nossas famílias. Esse Cabelo é um livro extremamente necessário nos dias atuais: desamarre, ame, viva e entenda seu cabelo e sua história, da maneira que eles são.

Sobre a autora

Esse Cabelo

Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Angola (Luanda), no ano de 1982. Mudou-se para os arredores de Lisboa com a família em 1985, aos três anos. Cursou Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa e é doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa. Esse Cabelo é seu romance biográfico de estreia, e com ele recebeu indicações a vários prêmios literários importantes, como o Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative, pelo qual foi finalista. 


Esse CabeloEsse Cabelo: A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras

Autora: Djaimilia Pereira de Almeida

143 páginas

Editora LeYa

Este livro foi cedido para resenha pela editora

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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