Açúcar: uma viagem não muito aprazível

Açúcar: uma viagem não muito aprazível

A primeira tomada de Açúcar, dirigido por Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, remete a uma bela pintura em que um barco à vela navega por um canavial. O verde que balança com o forte vento, lembra um mar agitado em que a viagem não parece muito aprazível. Na proa, uma mulher chamada Bethânia Wanderley (Maeve Jeankis) retorna para o decadente engenho de cana de açúcar na zona da mata nordestina que pertence a sua família há décadas.

Ao chegar à propriedade e ocupar a Casa Grande, Bethânia encontra os antigos empregados Zé (José Maria Alvez) e Alessandra (Dandara de Morais). Esse encontro dá ensejo a uma relação um tanto quanto conflituosa não apenas com eles, mas com seu passado. Afinal, a protagonista retorna para tentar impedir que sua propriedade seja ocupada em definitivo por aqueles que já detém a posse de terras vizinhas. E aí o filme já diz ao que vem. Açúcar pretende abordar de forma fabulesca os horrores que remetem ao nosso passado escravagista, que firmou os pilares da sociedade brasileira, mas do ponto de vista daquela que ocupa a Casa Grande e não a Senzala.

Importante ressaltar o fato de Bethânia ser apresentada com nome e sobrenome enquanto os empregados não. O sobrenome Wanderley remete à família de latifundiários que de fato fazem parte da nossa História e do passado colonial que infelizmente nunca nos abandonou, sendo apenas atualizado a cada nova emenda e reforma que altera a nossa legislação trabalhista. É sobre esse tempo político passado/presente/futuro que o filme de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira tenta discorrer. Curiosamente, a locação é um engenho de açúcar que pertence à família da diretora.

A cenografia é um aspecto bastante relevante na narrativa. A casa vai se modificando no decorrer da trama que se adensa, criando um eficiente clima de horror, ao utilizar elementos do cinema fantástico. A excelente direção de arte assinada por Renata Pinheiro aposta em cada detalhe para que o filme esteja no meio do caminho dos tempos que o roteiro pretende explorar.

Porém, todas estas grandes qualidades técnicas não são suficientes para dar conta de um argumento que acaba resvalando no caricatural, quando tinha uma potencialidade enorme para fazer uma crítica de fato contundente. A opção pelo enfoque unicamente na protagonista, sem tridimensionalizar aqueles que em geral são retratados nas artes de forma subjugada, torna Açúcar maniqueísta e, portanto, infértil naquilo em que se propõe. O raso e por vezes exótico desenho de todas as demais personagens que compõem o roteiro acaba por reforçar uma narrativa preconceituosa com a qual se deve ter atenção redobrada ao trabalhar determinados temas de forma onírica.

A ótima personagem da madrinha de Bethânia (interpretada por Magali Biff) é esvaziada e abandonada pela trama justamente quando uma interessante relação começa a ser construída entre ambas. Os empregados estão presentes apenas e tão somente para servir (literalmente) ao arco de desenvolvimento de personagem da protagonista, uma vez que nunca acompanhamos suas jornadas. “Negros assombrando brancos” já fazem parte de um imaginário perverso e segregacionista da nossa cultura que não precisa ser reatualizado.

Ao fim e ao cabo é isso que Açúcar faz ao nos limitar ao ponto de vista de Bethânia que vai enlouquecendo por não conseguir se desenredar de seus próprios devaneios. A mestiçagem da protagonista é mal explorada ao ficar apenas na parte alegórica e na tentativa sempre mal sucedida de “domar os cabelos”. A transformação um tanto quanto abrupta e raivosa desta personagem não confere um tom eficiente para a crítica que os diretores afirmam que gostariam de imprimir na tela. A catarse final expressa o sofrimento de Bethânia ao precisar lidar com as idiossincrasias de suas origens, mas a subjetividade daqueles que sempre se encontram às margens das narrativas aqui também permanece nas sombras.

A empatia e a condescendência que o roteiro imprime à personagem principal resvalam numa encruzilhada ambígua que nem sempre (re)produz a complexidade das simbologias pretendidas. Infelizmente as ruínas do engenho onde o filme é rodado estão presentes no modo de produção não apenas deste filme, mas do nosso audiovisual como um todo. Enquanto “corpos indóceis” como o da personagem interpretada por Dandara de Morais forem apresentados de forma exótica e aterrorizante, para emular as religiões de matriz africana, muito pouco teremos avançado no debate racial brasileiro através do cinema.

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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