Sofrimento feminino como redenção masculina em “Hemlock Grove” e “Buffy”

Sofrimento feminino como redenção masculina em “Hemlock Grove” e “Buffy”

[TW: estupro, sofrimento feminino] [Possíveis spoilers: Buffy e Hemlock Grove]

Que o sofrimento feminino é usado com uma frequência alarmante para desenvolver uma narrativa não é novidade pra ninguém. Em mais filmes/séries/livros que a gente possa imaginar, o sofrimento feminino, o abuso, o estupro ou qualquer tipo de situação que envolva uma mulher e situações traumáticas, acabam sendo utilizados no enredo. A grande pergunta é: em todas essas vezes existe essa necessidade?

Este final de semana passei assistindo a primeira temporada de Hemlock Grove (2013–2015), com produção executiva do Eli Roth e baseada no livro de Brian McGreevy. A série, mais uma dentre as várias que trabalha a típica ligação entre puberdade e criaturas místicas (como o lobisomem e o vampiro) não é de todo o mal. É até interessante, caso você esteja procurando alguma coisa pra assistir sem compromisso ou pretensão. Porém, o desenvolvimento de um dos personagens me fez pensar em algumas coisas. Roman Godfrey, personagem de Bill Skarsgård, é um upir, um tipo de vampiro.

Durante toda a primeira temporada, Roman não sabe do que é capaz, desconhece suas habilidades. A única coisa que ele sabe é que consegue ouvir vozes e induzir pessoas a fazerem o que ele quer. Roman é o típico adolescente problemático que usa drogas, vive trocando de namoradas, sempre em festas, de uma família rica e que ainda por cima tem o dom de sugerir, com um olhar, que as pessoas ajam da forma que ele determina. Porém, até dá pra simpatizar com o rapaz. E é nesse ponto da narrativa que ele me lembra um outro personagem, de 20 anos atrás, e que também começou como um rebelde mas acabou se tornando um dos preferidos do público: Spike, de Buffy.

Com todo aquele visual punk, Spike é um vampiro tão adolescente rebelde quanto se pode ser, se tratando de um vampiro com algumas centenas de anos. Assim como Roman, Spike começa como um grande pé no saco. E assim como Roman, acaba despertando um lado interessante ao longo da série.

Uma diferença importante a considerar, talvez, é que Spike teve, no mínimo, 5 temporadas para desenvolver seu personagem. Aqui, estou tratando só da primeira de Hemlock Grove. Porém, o que me chama a atenção para ambos os personagens é o fato de que eles tem uma mesma atitude antes de terem sua “redenção”: Spike, durante a sexta temporada, tenta estuprar Buffy. Roman, após descobrir que sua amada prima está tendo um relacionamento com seu amigo lobisomem Peter, entra em colapso e estupra Ashley Valentine.

Logo após esses episódios, tanto Spike quanto Roman parecem descobrir um possível propósito para a vida deles: Spike vai atrás de recuperar sua alma; Roman entra em estado de coma e percebe que tem um trabalho a cumprir. Diferente de Buffy, entretanto, Ashley é ignorada quanto personagem. Buffy repensa o assédio em alguns momentos, mas não é algo que tenha maiores influências em sua vida e nos próximos episódios da série, como se fosse bastante compreensível o que Spike fez, visto que, bom, ele tinha levado um fora, estava agressivo e depois foi tentar recuperar 

Tudo ok então com essa utilização de assédio e abuso sexual já que esses personagens melhoraram, né?

NÃO. Não é tudo bem.

Tomando o Teste Bechdel do Estupro.

As perguntas do teste são:

  1. O estupro ocorre pelo ponto de vista da vítima? R: Em nenhum dos casos.
  2. A cena de estupro possui o propósito de desenvolvimento da personagem da vítima em vez da trama da narrativa? R: Não. Os desenvolvimentos, na verdade, são dos abusadores, não da vítima. Não percebo um desenvolvimento na Buffy depois do estupro dela, e a Ashley aparece novamente uma vez, em uma alucinação de Roman.
  3. O abalo emocional da vítima é desenvolvido depois? R: Novamente: não. Eu assisti a Buffy um punhado de vezes, e não me lembro de abalo emocional. Me lembro, sim, de alguma estranheza entre ela e o Spike, mas sem desenvolvimento.

O problema, novamente, é o fato de que roteiristas, escritores, diretores ou produtores acham que tudo bem colocar uma mulher sofrendo em cena se isso trouxer benefícios para o personagem que causou o abuso e o sofrimento. Enquanto o causador do sofrimento evolui como personagem, encontra sua redenção, percebe que tem uma missão, a personagem vítima acaba tendo seu sofrimento ignorado, não é trabalhado.

Não precisamos de mais mulheres sofrendo para que homens compreendam seus papéis no mundo. Enquanto houverem pessoas que acreditam que a representação de mulheres que sofreram algum abuso seja fácil de ser ignorado, para que o abusador possa seguir seu caminho iluminado, teremos problemas. Causa incômodo ver que as mulheres em cena servem como cobaias para que homens percebam seu propósito no mundo.

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Por fim, precisamos aprender a compreender por que essas questões estão erradas. Buffy era a heroína e personagem principal da série. Sofreu uma tentativa de abuso e isso nem foi trabalhado ou questionado posteriormente. Ashley apareceu em três situações, uma delas em uma cena desnecessária para a série.

O sofrimento feminino não deve servir para tapar buracos ou motivar personagens masculinos. É necessário responsabilidade ao tratar essas questões, que são delicadas para um monte de pessoas.

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Formada em História, escreve e pesquisa sobre terror. Tem um afeto especial por filmes dos anos 1980, vampiros do século XIX e ler tomando um café quentinho.
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