[CINEMA] Me Chame Pelo Seu Nome: O Primeiro Amor de Narciso (crítica)

[CINEMA] Me Chame Pelo Seu Nome: O Primeiro Amor de Narciso (crítica)

O cenário de Me Chame Pelo Seu Nome é familiar. Figura desde as imagens-paisagem que vendem a qualidade dos pixels dos televisores nas lojas de eletrodomésticos, até blockbusters como “Dirty Dancing” (Emile Ardolino, 1987), passando pelas novelas globais de Manoel Carlos, as páginas de Jane Austen e até mesmo as da revista Caras. Uma infinidade de suportes nos mostra a mesma imagem: a família rica que passa as férias em algum lugar bonito e verde, refrescando-se (em piscinas, lagos e até mares particulares). Eles comem frutas frescas e Nutella no café da manhã e passam o resto do dia empenhando seus esforços em maneiras prazerosas e morais de se passar o tempo.

Nos é familiar também que um membro desta família (quase sempre jovem) manifeste uma inadequação ao ócio burguês e, sedento por novas emoções, destaque-se, aos poucos, do clã. É aí, também já é de se esperar que um encontro inesperado traga uma nova motivação à sua vida que, no entanto, implique uma desobediência às expectativas de conduta impostas pela família e de seu lugar social.

Me Chame Pelo Seu Nome configura uma releitura do modelo acima, (recorrente no melodrama) mantendo o cenário e as estruturas familiares, mas rarefazendo a tensão central entre o velho e o novo mundo — na narrativa e na forma —, em uma construção que se assemelha às releituras alegres de Bach do personagem de Elio (Timothee Chalamet), o jovem em questão.

Elio é um belo (a beleza “quirky” do nerd americano, como a de Clark Kent) e talentoso filho de milionários eruditos, e o encontro inesperado e decisivo é com Oliver (Armie Hammer), um belo homem prodígio (já formado, com músculos e cabelos viçosos, uma espécie de Superman), pupilo do pai do jovem músico. Eles se apaixonam, conquistando um ao outro no jogo de diálogos em bate-e-volta que se encaixa com fluidez inumana e é quase um pré-requisito para as comédias românticas americanas. Suas tentativas desajeitadas de aproximação, entretanto, instauram uma brecha na sagacidade do verbo que nos dá espaço para que, pela via da fragilidade, nos identifiquemos.

Me Chame pelo Seu Nome

Somos puxadas pela mão que vacila para encostar no corpo alheio, pelo beijo travado que teme a não-correspondência e faz parte do conjunto de ruídos — meticulosamente calculados — que rompem com a beleza clássica que rege o filme. A intimidade entre Oliver e Elio nos parece “real” e serve como artifício perfeito para desviar a nossa atenção do verniz fantasioso e discreto que lima várias nuances inerentes às experiências que figuram na tela e confrontam os padrões da beleza clássica e da moral burguesa que moldam a película. Os corpos imperfeitos, as falas femininas, as tensões sociais e tudo o mais que macule (mesmo que coabite) o mundo alvejado no qual vivem as personagens são excluídos ou amenizados, em uma construção higienizadora de realidade

Enquanto esse processo acontece através da sutileza da ausência durante a maior parte do filme, ele se torna escancarado na primeira cena de sexo dos protagonistas, quando uma panorâmica nos coloca de frente para uma árvore, fora do quarto, durante o ato. As transas heterossexuais de Elio, entretanto, são mostradas várias vezes e decupadas de maneira quase publicitária. Filmadas de vários ângulos diferentes e inusitados — pensados para “valorizar” o corpo da mulher, nos deixam claro que a censura declarada no clímax do filme não é uma censura ao ato, mas a quem o performa.

Se o sexo gay configura uma perfuração violenta demais dos valores hegemônicos que o filme preserva (e a preservação se paga em uma recepção calorosa de público e crítica), a presença do conservadorismo instaura, por si, outras formas de violência.

No longo plano dedicado ao momento em que Elio supostamente perde a sua virgindade com uma garota, ele experiencia o primeiro gozo, enquanto ela geme de dor. O garoto sensível demonstra alguma preocupação enquanto continua a se satisfazer. Quando finalmente termina, recebe automaticamente a redenção de sua parceira e cena nunca mais reverbera no filme, a não ser como parte de um padrão de abusos masculinos naturalizados a dóceis personagens femininas que nunca contestam. O feio e o incômodo não existem e as tensões são prontamente resolvidas, na construção de uma realidade que se pretende “universal” (nas palavras do diretor Luca Guadagnino).

Me Chame pelo Seu Nome

O preço que se paga por isso é a redução a estereótipos e silenciamento das personagens que se distanciam do padrão homem-cis-branco-rico-bonito-erudito dos protagonistas e o apagamento dos próprios comportamentos ameaçam a virilidade destes. Os trejeitos associados ao feminino, como a espera por um bilhete que não chega (uma releitura do clichê “por que ele não me liga?”) se tornam alívio cômico (se é que há alguma tensão a ser aliviada) na narrativa, assim como quase todas as aparições de mulheres, cuja estereotipificação se torna fonte de riso fácil e, pior, constrói uma ponte com a tradição que torna o filme mais digerível e dialogue com mais .

A aceitação ampla de uma forma de amor que, apesar de existir desde que existimos, ainda é “subversiva” seria uma contribuição notável de Me Chame Pelo Seu Nome, se o filme não se apoiasse em uma série de pilares discursivos e convenções hegemônicas que necessariamente denigrem outros modos de existência. Apesar de todo o trabalho de diferenciação e romantização dos protagonistas, o próprio título já entrega: a atração entre eles nasce da reflexão de si no outro.

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Em um mundo idílico e falocêntrico, eles se reconhecem na inteligência, nos músculos, na bondade, na erudição, e na branquitude que tanto admiram. Depois de um momento inicial de comparar suas habilidades superiores (e tê-las comparadas por todos ao seu redor) e de um flerte competitivo eles se rendem ao o gozo narcisístico e incomparável de fundir-se consigo mesmo. Eles se fecham cada vez mais em um paraíso particular, povoado apenas por seus semelhantes e, em nome do amor, tentam nos vender a ideia de que seu gozo é, também, universal, mesmo que estejamos excluídas dele.

Texto escrito pela colaboradora convidada, Duda Gambogi.

Sobre a autora: Duda Gambogi ama falar sobre todas as coisas e segue na missão de tentar transformar suas ideias em imagens.

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