[CINEMA] The Post – A guerra secreta: Bem realizado, mas asséptico (crítica)

[CINEMA] The Post – A guerra secreta: Bem realizado, mas asséptico (crítica)

Uma das apostas dessa temporada de prêmios, The Post – A guerra secreta tem por foco os bastidores da publicação pelo jornal Washington Post de documentos secretos do governo norte-americano expondo uma rede de tramoias e mentiras que contribuiu para a manutenção do fiasco da Guerra do Vietnã, que àquela altura já se arrastava há mais de década.

A trama tem por protagonistas Kay Graham, dona do jornal, e Ben Bradlee, editor-chefe da publicação, interpretados por Meryl Streep e Tom Hanks, em atuações que fazem jus aos cinco Oscars que juntos contabilizam. Streep, num desempenho contido, mais calcado na reação do que na ação (à exceção de duas cenas em que a personagem se desenvolve um pouco mais), continua sendo uma força maior.

Nessa mesma direção, Bob Odenkirk revela seu potencial como ator dramático dando vida a um dos mais corajosos membros da redação. Já Michael Stuhlbarg, que interpreta Abe Rosenthal, editor-executivo do The New York Times, exibe o talento que o faz integrar o elenco de três filmes da corrida do Oscar 2018 (além de The Post, ele está igualmente ótimo em A forma da água e Me chame pelo seu nome).

De fato, o elenco e a direção de atores funcionam bastante bem, conferindo dimensão a personagens que o roteiro, assinado por Liz Hannah e Josh Singer e cheio de escolhas óbvias, não consegue delinear de forma aprofundada e tridimensional. Vale lembrar que Singer venceu o Oscar de melhor roteiro original por um filme de tema muitíssimo similar, Spotlight, coescrito por Tom McCarthy.

The Post

É curioso que o conteúdo dos tais documentos em torno dos quais gravita a trama, ainda que seja mencionado diversas vezes, jamais seja discutido de forma aprofundada, dando conta da importância desse material ou abrindo espaço para um debate mais incisivo sobre o terror da política imperialista norte-americana. Talvez se presuma que ao menos o público doméstico já tenha perfeito conhecimento desses fatos, ainda que eles tenham ocorrido há mais de 45 anos. Em vez disso, a trama se concentra no heroísmo dos jornalistas que trazem à tona essas evidências, passando do que poderia ser um filme crítico à política externa norte-americana e suas consequências devastadoras a um filme que elogia de maneira pouco anuançada o trabalho da imprensa nos Estados Unidos.

É bem verdade que, em tempos de Trump, Temer e ameaças de censura, essa abordagem tem seu valor, mas se pode argumentar que Spielberg tem a desagradável tendência de fazer obras quase que de propaganda de certos “valores sagrados americanos”, como a ideia de uma liberdade redentora que não passa de mera ficção. Assim, os mocinhos parecem perfeitos e todos igualmente bem-intencionados em sua corrida para alertar o público dos desmandos do Estado (ainda que alguns tenham medo de enfrentar essas forças).

The Post

Se Spielberg domina tranquilamente a linguagem cinematográfica, ele vem usando seus recursos de forma tão pouco imaginativa que se tem a impressão de que se um dia estivéssemos diante de uma inteligência artificial que fosse capaz de reger o processo cinematográfico, o resultado seria um filme bastante similar em termos de estrutura e escolhas estéticas a The Post. Há sim lindos planos longos, em que a câmera parece adentrar organicamente o espaço da redação do jornal, mas eles surgem perdidos numa direção que opta por sublinhar todos os sentimentos e intenções dos personagens com um pesado marca-texto, trabalhando com um roteiro que já não prima pela sutileza.

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A condescendência com a espectadora (ou a pouca fé em suas mínimas capacidades de fruição) é patente: numa das primeiras sequências do filme, perfeitamente dispensável, temos o soldado que rouba os tais documentos secretos. O diretor opta então por uma montagem de páginas da papelada e closes do rosto do homem, que lê em voz alta os principais pontos do material que tem em mãos (!), intercalados com trechos de declarações de autoridades que desvelam as mentiras do governo americano. Outra escolha reiterada e cansativa é a utilização repetida de planos próximos de porta-retratos para explicar a natureza das relações pessoais entre determinados personagens.

The Post

Por fim, o arco dramático da personagem de Meryl Streep se apoia na noção de um feminismo didático e pueril, sem qualquer aprofundamento maior, de forma que o filme surfa na agenda dos tempos atuais, tratando do tema, mas se recusando a verdadeiramente debatê-lo. E haveria oportunidades para tal, que são desperdiçadas, como a bonita (mas superficial) cena em que Kay discute com a filha a morte do marido e suas escolhas profissionais posteriores.

The Post é, assim, um filme indiscutivelmente bem realizado, mas asséptico, desprovido das tentativas de invenção que poderiam levar ao erro, mas ainda assim seriam capazes de imprimir alma à narrativa.

O filme estreia no Brasil na próxima quinta-feira, 25 de janeiro.

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Formada em Cinema, doutora em Literatura Comparada, faz parte do coletivo de mulheres críticas de cinema Elviras e é uma das apresentadoras do vlog A Lente Escarlate. Em 2015, lançou Olhar o mar: Woody Allen e Philip Roth - a exigência da morte (editora Verve).
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