I Love Dick: a inadequação do desejo feminino

I Love Dick: a inadequação do desejo feminino

I Love Dick é uma série da Amazon Prime Video sobre um casal de artistas enfrentando as crises de um casamento desgastado, enquanto ambos lidam com as frustrações da meia idade e a obsessão por um homem. Tecnicamente a série fala sobre isso, mas não apenas. Mas não se deixe iludir pelo tom cômico e os ares de comédia romântica; I Love Dick é uma obra que exige do espectador: exige atenção, empatia e reflexão.

Não há forma sucinta de apresentar I Love Dick, nenhuma apresentação parece perfeitamente acurada, pois a série não se encaixa exatamente em nenhum gênero. O que vemos transcorrer ao longo de 8 pequenos episódios é parte da jornada de uma mulher se deparando com seu desejo, apresentada de forma perspicaz através de um texto cheio de provocação, que cava pouco a pouco questões profundas sobre feminilidade.

Para quem esperava outro sucesso retumbante de Jill Solloway como Transparent, I Love Dick decepcionou. A série se baseia no livro semiautobiográfico de Chris Kraus – que foi lançado em 1997, mas alcançou maior sucesso nos últimos anos – foi produzida para a Amazon e têm praticamente o mesmo time criativo de Transparent por trás.

A atuação de grandes nomes como Kevin Bacon e Kathryn Hahn aliada ao texto e à fotografia fazem da série uma experiência televisiva interessante. Kevin Bacon sabe exatamente como usar sua persona de forma sútil e expressiva na medida certa, deixando espaço para o nosso imaginário em relação ao personagem e ao próprio ator. A série ainda conta com conhecidos e promissores nomes como Griffin Dunne, Roberta Colindrez e India Menuez. Mas I Love Dick não emplacou como um sucesso. Por quê?

DESEJO, OBSESSÃO E FRUSTRAÇÃO

Porque I Love Dick ousa falar sobre as contradições do feminino, usando um casamento falido e um grupo de artistas elitistas de pano de fundo. A série traz nomes de arte moderna como se fossem cultura popular, discute as dificuldades que mulheres encontram no meio artístico e joga cena após cena questões contemporâneas sobre arte e o papel do feminino, enfim, uma série que aparentemente não é para qualquer um.

No entanto, apesar disso, I Love Dick ousa ser universal ao abordar uma das questões mais íntimas e viscerais do ser humano: o que desejamos? Mesmo quem amou cada episódio da série pode ter dificuldades para indicá-la a outros. Quem está disposto a acompanhar as digressões de uma mulher de 40 anos frustrada com a carreira e o casamento? Quem quer se sentir transtornado pelas questões levantadas sobre relacionamentos e ser conduzido a pensar sobre as próprias questões? Sim, I Love Dick não é para qualquer um, mas é uma experiência e tanto para quem se dispõe.

I Love Dick

Dear Dick, this is about obsession. How did we not know each other before now?”

Chris é uma cineasta que acaba de ter seu filme rejeitado num festival, Sylvere é um escritor que não teve mais nenhum grande sucesso desde o primeiro livro. Personalidades fortes em um relacionamento de anos, os desgastes surgem nos detalhes e explodem em discussões agressivas e proibições. As frustrações acumuladas dão espaço para a obsessão por Dick, enquanto Chris desaba em desejo e luxúria pela figura de Dick, Sylvere abraça a fantasia até o momento em que seu orgulho e vaidade são colocados à prova. Parecer fraco e submisso diante de Dick é uma afronta tão grande que um comportamento autoritário se revela, afinal o relacionamento pode ser sacrificado em prol de sua imagem.

O MACHO PERFEITO

E quem é o amado Dick? Dick é o estereótipo do macho perfeito, com todos os ângulos, posturas e defeitos ajustados para dar o tom exato da masculinidade. Dick é um cowboy, silencioso, misterioso, apreciador de linhas retas e monumentos gigantescos em sua arte. Dick é o que todos os trocadilhos em inglês sugerem, é um babaca por muitas vezes, mas também é um deus, uma autoridade, uma brincadeira da autora em relação a inveja do pênis. Mas Dick, acima de tudo, não é ninguém, se apresenta silencioso e estagnado nas imagens do desejo de Chris, é uma projeção da imaginação dela.

I Love Dick

“Dear Dick, did you think this is gonna be pretty?”

O verdadeiro Dick se revela apenas nos episódios finais, quando nos deparamos com sua fragilidade juntamente com a fragilidade de Sylvere. E, como é de se esperar, o Dick real decepciona, não poderia ser diferente. Toda fantasia está fadada a terminar em decepção de alguma forma.

O DESEJO FEMININO EXPOSTO

A falta de adaptação de Chris àquele ambiente traz o tom cômico e torna a série um pouco mais leve, é o andar desajeitado, o cabelo que insiste em entrar na boca, o vestido que não para arrumado. A atuação de Kathryn Hahn é espetacular, Chris é um vulcão prestes a explodir, é impossível como mulher não se sentir empática a sua energia, não compreender seu sentimento de inadequação, sua vulnerabilidade. Que mulher nunca ouviu que deveria ser menos, que deveria agir menos, que deveria se conter?
Contenção. Adaptação. Adequação.

É o que Sylvere e Dick demandam à Chris. Como pode uma mulher madura se apresentar de forma tão caótica? Torcemos para que Chris não se exponha tanto, nos envergonhamos com ela, afinal mulheres são ensinadas desde jovens a serem desejáveis, mas não podem demonstrar desejo. Demonstrar o desejo é coisa de mulher que não se dá o valor, é inadequado, inconveniente. As ordens de controle e contenção à Chris, o desdém em relação a suas questões e demandas, conduzem a personagem a expor cada vez mais seus sentimentos, fazendo dessa expressão a sua arte, influenciando as outras mulheres em volta, buscando o valor e reconhecimento que merece.

I Love Dick

“Dear Dick, desire isn´t lack. It´s excess energy, a claustrophobia inside your skin.” 

Paralelo a história principal, os personagens coadjuvantes emergem pouco a pouco com histórias auxiliares que evocam o mesmo tema, como lidamos com nosso desejo? Como lidamos com nossas frustrações? Como buscamos tapar nossos vazios e orifícios com o que outros têm a nos oferecer? A pungência da questão do feminino cresce a cada episódio, até que no episódio 5 vemos de forma belíssima a descoberta da sexualidade das personagens femininas contada através de pequenos monólogos e compreendemos como Dick se introduz em suas histórias (sim, é mais um trocadilho mesmo).

O microambiente do instituto cheio de artistas é supostamente liberal, mas apesar do discurso, os artistas nem sempre são bem-sucedidos em se contrapor as opressões que os cercam. E o trabalho da autora em problematizar as dificuldades de ser uma mulher artista foi abordado de forma brilhante na série. O conceito de arte é colocado em questão, juntamente com as barreiras que as mulheres enfrentam num meio tão majoritariamente masculino. Em ambientes que se dizem mais liberais o machismo nem sempre está explícito, está nos detalhes.

O RETORNO A SI MESMO

I Love Dick

“Dear Dick, I´m stripping this whole intrigue bare.” 

O foco dos primeiros e dos últimos episódios está nas singularidades desse pretenso triangulo amoroso que revela a universalidade dos papéis sociais. Dick, novamente evocando o trocadilho, não é apenas um homem, é o que há de comum a todos e compartilha com Sylvere o medo de demonstrar suas fragilidades, ao mesmo tempo em que cometem o erro mais grotesco que qualquer um pode cometer: julgar que pode decidir sobre o desejo do outro. As consequências disso para Chris são, ao mesmo tempo, devastadoras e libertadoras.

Assim como tudo que é singular ao campo do desejo humano, o desfecho dos personagens não é sútil, nem é exatamente lógico. Chris mergulha nas mesmas águas que no começo escondem Dick para se revelar e encontrar em si a resposta para suas demandas. Ao se deparar com o verdadeiro Dick, finalmente caminha para aceitar que alguns desejos e faltas jamais podem ser suprimidos ou preenchidos, fazem parte do que somos, do que permanece em nós.

Chris, Paula, Toby e Devon literalmente conduzem Dick e Sylvere a abraçar a própria vulnerabilidade, a abraçar o feminino que tentam mascarar, não são monstros, são homens criados para cumprirem um papel. Cada um à sua maneira abraça essa vulnerabilidade, mas nunca sangrarão como uma mulher.

Autora convidada: Silvana Guarnieri é uma mulher gorda, feminista, rpgista e viciada em livros, séries e filmes, não é mãe de pet mas divide a casa com muitos, ama cozinhar e fazer debates imaginários enquanto toma banho. Nas horas vagas, brinca de estudar cinema e psicanálise e faz de conta que é psicóloga e tradutora.

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