“Couro de gato – uma história do samba” dá visibilidade ao gênero, com breve menção às mulheres que o gestaram

“Couro de gato – uma história do samba” dá visibilidade ao gênero, com breve menção às mulheres que o gestaram

Romances gráficos estão ganhando cada vez mais espaço no mercado editorial brasileiro, e com razão. A qualidade dos trabalhos de quadrinistas, aqui e lá fora, aliada a um trabalho de pesquisa histórica e sociológica de fôlego, permitem não apenas o prazer de se ler uma boa história, como também conseguem formar e informar sobre temas constantemente ignorados pela mídia tradicional, como a misoginia, o racismo, a concentração de renda, a realidade de quem convive com uma deficiência e a exploração do meio-ambiente. A obra Couro de gato — uma história do samba, do quadrinista Carlos Patati e do gravurista João Sánchez, lançada em 2017 pela Editora Veneta, é um desses trabalhos.

A técnica utilizada para criar os quadrinhos é a xilogravura, um tipo de gravura em madeira, e o resultado é belíssimo, com a criação de um cenário expressionista e sombrio que aos poucos se ilumina, conforme o samba ganha espaço e autonomia, um misto de paisagem onírica e realidade cruel, entre o mágico e o trágico.

As imagens mais parecem fotografias de um filme noir, com o uso da técnica claro/escuro que permite à leitora mergulhar no suspense do Rio de Janeiro do início do século XX, com suas ruas e vielas misteriosas, com gatos pretos pelo caminho, o cenário urbano retratado tanto como um lugar de animosidade quanto como um espaço de resistência, a oprimir/abrigar sambistas classificados como marginais e perigosos pelo Estado racista.

A pesquisa histórica e a linguagem utilizada são igualmente minuciosas. Como o próprio título menciona, esta é uma história do samba, e como não poderia deixar de ser, lá estão documentados o início e os primeiros anos daquele que viria a se tornar um dos mais potentes símbolos da identidade nacional. Da descrição dos cenários a partir do olhar de quem mora no morro e vê a cidade do alto, à reprodução do modo de falar da favela, a impressão é de que se está testemunhando o parto do samba tal qual ele aconteceu, entre os arredores do Morro do Castelo, da Praça Onze, no Centro Velho, e do bairro da Penha.

Couro de Gato

Episódios importantes para a história da cidade e do Brasil são contados num tom de familiaridade e com uma singeleza que não tornam a leitura cansativa, e, em um país que ainda não valoriza e não dá o devido valor ao ensino da cultura e da história afro-brasileira nas escolas (cujo ensino é determinado por uma lei que não é cumprida, apesar da luta e da vigilância do movimento negro), Couro de gato poderia – por que não? – ser adotado como uma obra introdutória ao tema junto a crianças e adolescentes.

Estão presentes na narrativa fatos decisivos para se entender a origem do samba e a mentalidade escravocrata que não acabou em 1888 e que buscou, senão pelo meio legal, pelo menos pela via administrativa e policial, marginalizar e acuar a população negra, formada tanto por escravizados que foram libertos quanto por seus descendentes.

A promessa nunca cumprida de casa e trabalho para os homens negros que lutaram em diferentes campanhas militares é mencionada logo no início, uma vez que foi um fato importante para transformar a paisagem urbana carioca no início do século XX, assim como o êxodo rural crescente dos libertos que migraram para a então capital da República em busca de trabalho (precário).

O sonho eurocêntrico dos administradores municipais de tornar o Rio de Janeira uma “nova Paris” — destruindo as casas da população pobre para abrir espaço para bulevares e largas avenidas, empurrando-os para os espaços mais precários e utilizando a força policial para conter os indesejados — levou os bambas do samba, aqueles e aquelas que deram início ao gênero e eram conhecidos/as por sua genialidade, para uma vida de privação e de nomadismo, e com a perseguição de seus/suas pioneiros/as, o samba também sofreu.

Sem academicismos ou simplificações, por meio da fala de Camunguelo, o protagonista de Couro de gato, os autores relacionam a história do samba com a Revolta da Chibata, a Revolta da Vacina, a Guerra de Canudos e a diáspora negra da Bahia para o Rio de Janeiro, entre outros episódios de relevo. Um dos mais bonitos é o que menciona a Revolta da Chibata, ao contar a história do marinheiro negro João Cândido, rebelde que levou os colegas a apontar o canhão para a cidade, mas que recebeu de volta, do povo do morro, comida, apoio e até abrigo para que se escondessem das autoridades.

Couro de Gato

A importância de se recuperar a história do samba é mostrar o longo caminho rumo ao reconhecimento – legal, mas também social – de um modo de viver, criar e pensar que por vezes é invisibilizado, ainda mais quando há um sequestro dessa cultura pela indústria milionária do carnaval e pelos meios de comunicação hegemônicos, ao mesmo tempo em que administrações como a do prefeito evangélico do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), tentam marginalizar e demonizar o que a ele está associado.

Como afirma a pesquisadora do Museu Nacional do Som, Rachel Valença, em entrevista ao Ministério da Cultura, reproduzida pelo Huffpost Brasil:  “O samba é o fenômeno mais impressionante do século 20, porque, em 100 anos, ele passou de perseguido a símbolo de uma nação, é uma trajetória muito gloriosa.” Em um momento em que essa perseguição parece ganhar força novamente, apropriar-se do tema é fundamental.

A importância das mulheres que pariram o samba

Uma história do samba não poderia deixar de lado os nomes mais associados ao gênero: Noel Rosa, Donga, Sinhô, Pixinguinha, que interagem com Camunguelo e outros homens anônimos que simbolizam a identidade fluida dos que se dedicavam ao ofício. Como dizia o ditado em relação à autoria das músicas: “samba é feito passarinho, está no ar, é de quem pegar”. Por conta disso, não raros eram os casos de mágoa, inveja e sentimento de estar sendo traído por parte de quem não era incluído nos créditos das músicas e no pagamento dos direitos autorais.

Em um aspecto, no entanto, os autores deixam a desejar, embora pareça haver um pequeno esforço na direção contrária: a forma como as mulheres são retratadas. É importante lembrar que o samba, por ser um gênero intimamente ligado à cultura negra e de origem africana, é um fenômeno que nasce a partir da experiência muito valorizada de comunalidade, de partilhamento de recursos materiais e imateriais, de uma noção de família estendida e de respeito à ancestralidade e aos mais velhos e mais velhas.

E, neste cenário, é imensa a importância das mulheres, algo que se perdeu a partir da imposição do sistema escravocrata e colonizador por parte dos homens brancos proprietários ao resto do mundo. A ideia de que um modo de vida e de arte nascido no seio desta comunidade seja fruto exclusiva ou majoritariamente de homens é também se deixar levar por uma mentalidade patriarcal que divide e hierarquiza a sociedade de acordo com o sexo. O fato de que eles sejam visibilizados e celebrados não significa que tenham sido apenas homens os que estavam à frente deste movimento criativo e de resistência.

Couro de Gato
Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, em foto de data desconhecida

Isso diz respeito principalmente ao caso de Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata, uma sambista, quituteira, mãe de santo e ativista nascida na Bahia em 1854 que emigrou para o Rio aos 22 anos. A casa de Tia Ciata era o reduto dos grandes sambistas, onde ela os recebia com festa, apoio e comida, mas não apenas isso. Tia Ciata ela era própria uma sambista, tanto que começam a emergir relatos de que ela também compôs muitas músicas junto aos sambistas que levaram, sozinhos, os créditos, como é o caso de “Pelo telefone”, considerada a primeira gravação de sucesso do samba (embora não a primeira).

Embora Tia Ciata e outras “tias” sejam citadas como as donas das casas onde as festas ocorrem, elas estão pouco presentes nas imagens e quase nada se fala sobre quem são individualmente para o processo criativo do samba – uma pequena nota bibliográfica ao final do livro discorre mais sobre Tia Ciata, mas, no entanto, a coloca como “matriarca” (o que é verdade), mas não como sambista. No geral, as mulheres aparecem na obra apenas como conquistas amorosas, aquelas que serão encantadas por meio dos versos e melodias do samba, e não como colaboradoras dos sambistas e guardiãs do conhecimento e artífices da resistência negra frente à criminalização do gênero.

Este é o caso da personagem Clarinha, uma moça seduzida por Camunguelo que, inclusive, é muito mais velho do que ela – ela por vezes a chama de “tio” e ele, por sua vez, afirma que, quando ele estava presenciando os acontecimentos históricos da cidade, ela mal havia colocado os pés no mundo. Clarinha é apresentada como curiosa e inteligente, mas desaparece rapidamente de cena após passar a noite com Camunguelo e ser agredida pela tia depois de ser vista com ele por vizinhas, e planejar com o sambista uma fuga de casa.

Uma vez que Noel, Pixinguinha e os demais homens são famosos e dispensam apresentação, não seria o caso de pormenorizar ou explicar quem são. Mas, no caso de Tia Ciata, uma mulher negra de imensa importância para a história do samba e também para o movimento negro e de mulheres, ainda invisibilizada pela História, seria de imensa importância explicar a quem lê quem é ela não apenas em uma pequena nota no final da obra, mas dentro da própria história; assim como dar mais expressão ao papel das mulheres na criação e desenvolvimento do samba, não apenas como matriarcas acolhedoras de homens geniais.

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Como afirma Juliana Gonçalves nesta matéria da Revista Trip sobre o legados das mulheres no samba: “Por muito tempo, as mulheres não tiveram vez no samba. Não que não estivessem lá, mas as rodas de samba, as composições, o palco e o sucesso eram territórios dominados por homens. A importância delas era minimizada. Ainda assim, sambistas mulheres de ontem e hoje deixaram suas marcas na história. Não pediram passagem, mas vieram com suas posturas questionadoras e atemporais nos versos sobre o universo feminino, sobre a vida”.

Muitos nomes femininos ainda estão por ser conhecidos, é fato, já que as mulheres, enquanto sambistas, só passaram a ter visibilidade a partir dos anos 60 (com Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara), porém, é importante sempre mencionar que as mulheres da grande família estendida que é a família do samba também são protagonistas desta história, enquanto letristas, criadoras de melodias, divulgadoras da cultura e pilares da resistência frente à criminalização e à invisibilidade do gênero. Em suma: as mulheres sambistas também foram (e são) “bambas”.


Couro de GatoCouro de Gato — uma história do samba

Carlos Patati e João Sánchez

Editora Veneta

142 páginas

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Para saber mais:

Documentário “Tia Ciata” (trailer) – Mulheres negras ativistas contam a história da grande sambista e matriarca.

Curiosidade: A ala das baianas nas escolas de samba é uma forma de homenagear não apenas Tia Ciata, mas a memória de todas as tias baianas do samba. Os primeiros desfiles de carnaval no Rio, inclusive, tinham como tradição passar em frente à casa das tias, como forma de honras aqueles espaços onde o samba nasceu, floresceu e resistiu.

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