Queer Eye: como um reality show pode contribuir pela luta da igualdade de gêneros

Queer Eye: como um reality show pode contribuir pela luta da igualdade de gêneros

A nova temporada de Queer Eye estreou na Netflix para reafirmar que masculinidade é uma coisa nociva para os próprios homens. Em 2015, a Netflix lançou o documentário The Mask You Live In que aborda como a masculinidade tolhe a sensibilidade e a liberdade dos homens, e que enquanto eles tiverem essas amarras, a sociedade não vai para frente. Enquanto nós, mulheres, possuímos o feminismo como um movimento político para nos defender do patriarcado, este, por sua vez, impõe aos homens a perpetuação da masculinidade. Assim, a cada dia percebemos que o feminismo só será implantado, de fato, na sociedade, aliado ao surgimento de um movimento libertário também para os homens, e de certo modo é isso que Queer Eye nos mostra.

Sabemos que o feminismo busca a igualdade entre gêneros, mas enquanto a masculinidade for essa coisa frágil que considera limpar a bunda de um filho, e quiçá a sua própria, como sinal de fraqueza (ou prova de sexualidade), a coisa não vai andar. O modo como uma pessoa se veste, seus gostos e como ela trata de seu asseio pessoal, não pode estar ligado ao seu gênero ou orientação sexual. Cada vez que um cara deixa de passar hidratante no corpo por medo de ser “zoado” pela “galera do futebol”, caminhamos de volta a era neandertal com o rabo entre as pernas. A sociedade não melhora e ficamos rodando em círculos. Da mesma forma quando usam a homofobia como forma de auto-afirmação da masculinidade dos homens heterossexuais, para os quais não existe nada mais aterrorizante além do medo de ser comparado a um gay. É nesse contexto que surge Queer Eye, um reality show (essa coisa boba que tantos criticam) que se posiciona politicamente como um elemento libertador para os homens. Quem diria, não é mesmo?

Queer Eye

Queer Eye é um reboot do show Queer Eye for the Straight Guy, que existiu de 2003 a 2007. Nele cinco especialistas gays colocavam seus conhecimentos a disposição de um participante para ajuda-lo num makeover. Havia (e ainda há) especialistas em moda, culinária, decoração, cultura e aparência. Nessa época, as vezes eu ficava incomodada com a forma como Os Fab 5 (como os especialistas são chamados) se colocavam. Tinha um quê de gay prestando serviço para hétero. Os participantes do reality usavam a expertise do consultor para melhorar sua apresentação social, mas por dentro continuavam os mesmos. Era apenas uma ida ao cabeleireiro.

Na nova temporada existe afeto envolvido, os personagens passam por uma mudança externa que tem como objetivo mexer com o interno deles. Chorei em quase todos os episódios e não estava de TPM. É tocante ver pessoas que não tem nada em comum se relacionando. Dá uma esperança no mundo. Imagine all the people, living life in peace... A gente sente vontade de cantar. De repente pode até ser tudo encenado, mas ver um policial bronco sulista, que vota no Trump, se abrir e conversar com um gay negro sobre abordagem policial, é uma coisa maravilhosa. E o mais incrível é paciência e a forma de se comunicar dos Fab 5.

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O novo quinteto é formado por: Bobby Berk (design), Antoni Porowski (gastronomia), Karamo Brown (cultura), Jonathan Van Ness (cuidados pessoais) e Tan France (moda). No episódio três, o consultor de cultura Karamo Brown fala sobre essa abordagem: “A beleza do que está acontecendo é que eu sou aberto, e vou ficar aberto, porque preciso que ele aprenda de mim, preciso aprender com ele. Porque nesse momento, nosso país, parece que está ficando pior”. Eles têm a sensibilidade de entender que se o participante se sente criticado em suas escolhas erradas, ele se fecha e não aprende como (e em quê) deve melhorar.

A temporada toda do reboot foi gravada na Georgia, um estado americano conservador onde a vitória de Trump foi significativa. Os participantes são pessoas que têm dificuldades de ser abrirem ao mundo, de cuidarem de si mesmos, seja por alguma amarra social (a dita masculinidade) ou por baixa autoestima. Por isso o programa trata tanto da aparência quanto do bem-estar emocional.

Os consultores procuram os aspectos positivos dos personagens em questão e focam nisso. São conselhos que funcionam não só para o participante, mas para quem assiste. Jonathan Van Ness, o consultor de aparência, repete sem parar que é normal tomar um tempo para cuidar de si mesmo. Mais que normal, é imprescindível para nossa saúde mental. Ele ensina cuidados que chegam a ser tocantes de uma forma extremamente respeitosa.

Um senhor com uma doença que deixa sua pele avermelhada e com um aspecto ressecado, é ensinado a passar filtro solar e hidratante. Um outro personagem ganha uma escova de dentes elétrica. São cuidados mínimos que talvez tenham sido deixados de lado por falta de amor próprio ou misoginia mesmo.

Queer Eye é um reality show que contribui para a quebra do sistema patriarcal. É um programa que liberta os homens heterossexuais e mostra sua vulnerabilidade de forma poética. A primeira vez que um cara aparece chorando, é estranho e você não sabe dizer porquê. Com o tempo percebemos que, o que é estranho é não estarmos acostumadas a ver homens chorando, seja na vida ou num programa de TV.

Entendemos que “estar aberto ao feminismo” não é só respeitar os direitos das mulheres, é também lutar pelo fim das amarras sociais. É lutar pela desconstrução da masculinidade. É desconstruir os padrões de gênero e expectativas comportamentais. É se sentir seguro para fazer tarefas consideradas “femininas” sem censura. Pois só assim avançaremos como uma sociedade igualitária. A grande surpresa e destaque dessa nova temporada é como um programa de makeover pode se colocar politicamente dentro da luta pela igualdade de gêneros.

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Candida Sastre é roteirista de humor e pesquisadora. Escreve artigo e entende dos paranauê acadêmico. Suas inspirações na crítica são Clement Greenberg (amém), Arthur Danto e a rainha Aracy de Almeida. Carioca, mother of cats, diferentona, tinha um blog chamado Sylvia. Faz parte do Gloria Steinem Futebol Clube. Escreve humor porque tem facilidade, mas queria mesmo ser o Daniel MacIvor.
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