[CINEMA] Platamama: entre tudo o que reluz, pelo olhar de Alice Riff (crítica)

[CINEMA] Platamama: entre tudo o que reluz, pelo olhar de Alice Riff (crítica)

As palavras brancas em Times New Roman sobre fundo preto reforçam a seriedade das cartelas iniciais de Platamama. Elas nos contextualizam sobre um grande problema social paulistano: as condições dos imigrantes bolivianos. Entre dados oficiais e não-oficiais, somos informados que 300 mil deles trabalham por salários baixíssimos em oficinas ilegais de tecelagem na Grande São Paulo. Se o nosso primeiro contato com o filme (salvo pela subversão da trilha fantasmagórica, com ruídos de maquinário) nos remete a um modelo didático de documentário, que retrata os sujeitos documentados como sintomas sociais, este é o único momento do longa de Alice Riff em que a nossa atenção é direcionada para o contexto, o macro.

O plano seguinte nos leva, como em uma viagem de drone imaginária, de uma panorâmica da Grande São Paulo e suas milhares de oficinas ilegais para um garoto, gravando um rap em seu celular. Ele é Choco, ou Denilson Mamani, o único homem adulto (a comemoração de seus dezoito anos vem logo na próxima sequência), e personagem principal das famílias de imigrantes bolivianos Mamani e Apaza, que vivem lado a lado. O filme se dedica a acompanhá-las, e fica quase inteiramente circunscrito às paredes das casas lotadas de pessoas, objetos e trabalho a fazer.

Contrariando as expectativas das cartelas de início, os gestos nos parecem muito mais familiares — e brasileiros — do que esperávamos. A mesa está sempre farta e a alegria parece permear igualmente as refeições, as conversas sobre compras a prazo e as longas horas de trabalho. A miséria dos anos anteriores macula a imagem romântica da terra natal e, de todos da família, Choco é o único que parece realmente inconformado com o trabalho na tecelagem. No auge da sua juventude, o garoto divide o tempo entre ajudar a família na costura e investir na carreira de rapper, ouvindo música, vendo videoclipes e compondo, por vezes segurando o bebê Jeff no colo, seu filho com Pamela Apaza.

No caso da mãe, a vida após o trabalho é dividida entre o curso de enfermagem, a maternidade e os deveres domésticos, esses dois últimos compartilhados com as outras mulheres da casa. Apesar dessas mulheres seguirem à risca a tradição patriarcal latino-americana, honrando os lugares preestabelecidos de submissão à figura masculina, essa é uma família de matriarcas. Desde a avó que lava roupas intermináveis no tanque até a jovem Pamela, são elas que, depois de cruzarem países, sozinhas ou com (e por) seus filhos, garantem uma base financeira e afetiva essencial que impede que todos os familiares sucumbam à rotina massacrante. O acúmulo enorme de funções se reflete em sua aparência sempre cansada, que contrasta brutalmente com os cabelos milimetricamente aparados, as correntes douradas, os brincos brilhantes e as roupas Yankees de Choco, que reafirmam seu papel faraônico na estrutura familiar.

Platamama

Assim como ele, os símbolos de riqueza, sucesso financeiro e fartura também adornam a casa abarrotada. Para além da oficina de costura, que ocupa boa parte da sala, o pequeno espaço é compartimentado por vários móveis e coalhado de objetos. Computadores, televisões e celulares estão sempre ligados, com suas telas brilhantes fazendo a ponte entre o mundo e o lado de dentro. Através deles chegam os vídeos, as propagandas, as telenovelas e as notícias de um país hostil, comentadas levianamente pela família: Uma mulher foi morta a 40 tiros; A economia vai piorar no ano que vem.

A câmera de Riff parece se instalar nas esquinas dos cômodos, quase sempre alinhada com as estruturas da casa e guardando uma distância respeitosa das personagens, reenquadradas pelas paredes e pelos objetos. Se os enquadramentos geométricos — que se repetem várias vezes — desenvolvem a narrativa com uma estabilidade que beira à monotonia, reforçada pela banalidade do cotidiano da família que fala sobre as mesmas coisas que as outras que têm contas demais a pagar, eles também desviam a nossa atenção para outros aspectos, não-ditos, do que é mostrado. Enquanto permanecemos enclausurados, presos à forma e ao ambiente, somos invadidos por um incômodo claustrofóbico, que nos atenta para a maior privação dos moradores: a liberdade de sair de casa.

Para que a comida chegue à mesa, os boletos sejam pagos, e alguns desejos de consumo sejam satisfeitos, é preciso ficar dentro dela, trabalhando muito mais do que as oito horas estipuladas pela CLT. Não sobra dinheiro para o lazer e, mesmo se sobrasse, o mundo de fora parece ameaçador. O “mercado de trabalho” também, em um país no qual oportunidades dignas de emprego estão longe de atender às demandas daqueles que precisam de trabalhar. Dentre os poucos planos exteriores, um, ausente de personagens, se repete sistematicamente: o ônibus que passa por várias vitrines de roupa em um centro comercial em São Paulo, ao som dos mesmos ruídos macabros das cartelas do início, como se fosse preciso conjurar uma tensão na realidade para nos relembrar que o dia-a-dia da casa é só um ponto em uma grande trama maléfica.

Essa necessidade parece ser, no entanto, uma preocupação restrita àqueles que filmam. Em meio à procura pela felicidade, não parece sobrar muito tempo, ou espaço, na vida dos Mamani-Apaza para a denúncia de sua situação social. A jornada desumana de trabalho é sempre humanizada (e latinizada, vale ressaltar) por conversas animadas, rezas e cantos, motivada por grandes sonhos e ofuscada pela tela que distrai. Em um retrato que condiz com a imagem dos brasileiros da classe trabalhadora, a alegria persiste, mesmo em meio à exploração. Se objetivo do filme é aquele indicado pelas cartelas iniciais, a denúncia da miséria, das condições de trabalho insalubres dos imigrantes bolivianos, ele falha miseravelmente e, ao mesmo tempo, expande a sua denúncia a nível global.

Os Mamani-Apaza vivem em uma zona entre as imagens edulcoradas do sucesso e o trabalho mecânico. Têm a liberdade de não estarem submetidos a um patrão, de poder escolher o que comer, de poder comprar à prestação, poder ganhar mais dinheiro. No entanto, estão praticamente e psicologicamente impedidos (o único que persiste é o jovem Choquito) de deixar a casa, que serve, ao mesmo tempo, de prisão e de refúgio. O que a falta a eles se faz sentir na discrepância entre o que se sonha e o que se vive, uma lacuna sintomática do estágio atual do capitalismo, que se abre em um abismo quando somada às restrições impostas pela imigração e pela pobreza.

Ao acompanhar a família de perto, a questão que se coloca, muito mais do que a crueldade do trabalho compulsório, é o que o suaviza. Entramos em contato com o que preenche seus espíritos, como eles cuidam uns dos outros, quais são seus sonhos, o que
sustenta a sua felicidade. Ao se esquivar do lugar comum — e exploratório — do documentário social, de retratar os sujeitos documentados como um corpo estranho, ilustração de um problema estrutural ou de um modo de vida exótico, Riff nos atenta para
uma outra forma mais profunda e camuflada de submissão, com a qual nos identificamos: a submissão às imagens que entram pelas telas, vendendo a felicidade e substituindo a vivência real em um mundo perigoso.

Para além de cultivar, durante o filme, uma relação respeitosa com as personagens, se aproximando suficientemente delas para desvelar o que há de universal (e perturbador) em suas questões, a realizadora promove uma autocrítica sobre o seu próprio lugar, explorando o papel do cinema na produção dessas imagens espetaculares e escravizantes. Suas operações formais são explícitas e é através de seu poder de intervenção que a trajetória (constante, repetitiva e interminável, na vida real) dos Mamani-Apaza se encerra com um um gran finale: a transformação da festa de aniversário de Choco (a oficial), em um videoclipe espetacular, com batidas eletrônicas e voz “auto-tunada”, nos mostrando que os finais felizes, nos tempos atuais, são uma questão de manipulação do som e da imagem.

https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=VP0bj5o5Pp4

Texto escrito pela colaboradora convidada, Duda Gambogi.

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