Entre-laços: transgeneridade, homossexualidade, abandono afetivo e o cinema de Naoko Ogigami

Entre-laços: transgeneridade, homossexualidade, abandono afetivo e o cinema de Naoko Ogigami

Eu quero dizer a todas as pessoas LGBT para nunca pensarem que são pecadoras”. A diretora japonesa Naoko Ogigami disse esse trecho durante uma entrevista sobre o seu novo longa, Entre-laços, que estreou dia 17 de Maio nos cinemas. A escolha da data de estreia representou um dia de luta: 17 de maio é o dia internacional ao combate a homofobia, lesbofobia e transfobia, e Entre-laços chega para questionar os diversos preconceitos enfrentados pela comunidade LGBT no Japão. A diretora constrói uma obra capaz de dialogar e questionar um tema universal presente, infelizmente, em todos os países.

O cinema de Naoko Ogigami

Indicada em diversos prêmios internacionais de cinema, seu quarto longa “Óculos” ganhou o prêmio Manfred Salzgeber Award, no Festival de Cinema de Berlim, e seu trabalho foi reconhecido por “ampliar as fronteiras do cinema atual”. A solidão, jornada excessiva de trabalho e os laços afetivos são temas recorrentes nas obras de Naoko Ogigami. Seus filmes são espécies de exercícios que pretendem mostrar a importância de um cotidiano menos corrido e mais saudável.

Nos tempos atuais, devido as jornadas exaustivas de trabalho e as violações aos direitos trabalhistas, como vemos recentemente no Brasil e no Japão, parece não haver mais espaço para apreciar as particularidades do cotidiano e a construção e manutenção dos laços afetivos. Dessa forma, as pessoas vivem cada vez mais jornada robóticas, sem tempo para a família, para o lazer, para respirar e compreender o próximo e a si mesmas. Todos os filmes de Naoko trazem uma importante lição: precisamos reaprender a apreciar a vida ao nosso redor antes que isso afete nossa saúde mental, antes de nos tornarmos pessoas doentes e incapazes de enxergar a beleza das coisas simples da vida.

Na maioria dos seus filmes nos são apresentadas as perspectivas femininas como destaque das histórias centrais. No longa “Óculos” conhecemos a viajante solitária que passa as férias em uma pequena pensão na praia; em “Rent a cat” conhecemos uma jovem que aluga seus gatos para pessoas solitárias, pessoas que precisam reaprender a apreciar a vida e construir laços afetivos com outras pessoas através da capacidade que o amor de um animal transmite aos humanos. Em “Kamome Diner” conhecemos a história de uma mulher japonesa que monta um restaurante na Finlândia e enfrenta a solidão de outro país e a dificuldade de conseguir clientes.

Entre-laços: abandono afetivo, transgeneridade, homossexualidade e maternidade

Entre-laços (no original: Karera ga honki de amu toki wa, em inglês: Close-Knit) estreou apenas ontem no Brasil, mas já conquistou o prêmio especial do júri no Teddy Award, no Festival de Berlim, além do prêmio de Melhor Longa Internacional, no Mix Brasil. O longa estreou no Japão ano passado, no dia 25 de fevereiro.

Logo no começo do longa a câmera de Naoko Ogigami já nos mostra uma cena forte de abandono afetivo. A bagunça das roupas espalhadas e objetos pelo chão do apartamento em contraste com a refeição solitária de uma criança, a jovem Tomo (Rinka Kakihara). Ela tem apenas 11 anos e carrega o peso e a ausência afetiva de morar com uma mãe alcoólatra que parece nunca estar presente, e chega em casa durante a madrugada. A cena inicial mostra que o abandono é um fato recorrente na rotina da garota, através do seu olhar resiliente antes de dormir, na espera da chegada de mãe durante a madrugada. É a partir de sua relação com seu tio Makio (Kenta Kiritani) que a garota encontra o acolhimento e o amor que parece nunca ter encontrado em seu próprio lar.

Tomo visita frequentemente a casa de seu tio. A garota gosta ler mangás, jogar videogames e brinca aparentemente como qualquer criança no lar do seu tio, mas na escola se isola das outras crianças. Uma resposta comum pela vergonha que sente dos colegas por saberem do abandono frequente da mãe. Durante a caminhada para a próxima visita na casa do tio ele avisa a sobrinha que está namorando e convivendo com alguém que importa muito e que é uma pessoa considerada como “incomum”. O que Tomo não sabe ainda e que descobrirá quando chegar na casa é que a namorada do seu tio, Rinko (Toma Ikuta), é uma mulher trans.

Entre-laços

O descobrimento da transgeneridade pela perspectiva da garota é abordado de forma natural, como deveria ser na vida real. No início, o aparente estranhamento da garota e a curiosidade de compreender o fato dela ser uma mulher trans é abordado com naturalidade através dos diálogos sinceros de Rinko com Tomo. A partir da conversa e do esclarecimento desde a infância ocorre uma ruptura no desenvolvimento de qualquer preconceito.

A própria diretora defende como a inocência de uma criança é capaz de mudar (e melhorar) o mundo. A partir do acolhimento, carinho e afeto que a menina recebe no lar do seu tio, advindo principalmente de sua relação com Rinko, notamos a importância de conversar com as crianças sobre identidade de gênero, tanto na família como nas escolas. Tomo encontra em Rinko a proteção e o amor que é ausente em seu lar, e é através dessa relação afetiva que o longa reserva algumas das cenas mais bonitas. Sobre preconceitos perpetuados na infância, Naoko Ogigami comenta: “As crianças são muito inocentes. Mesmo que elas discriminem através de alguns preconceitos, elas ainda podem reparar essas falhas aprendendo e confiando em outras pessoas. Quanto aos adultos, eles já têm um preconceito sólido. Não importa o quanto você tente, eles não vão ouvir você (tradução livre)”.

A discussão da maternidade também está presente no longa. Da mesma forma que o abandono afetivo é crime e pode ocasionar lesões no crescimento e desenvolvimento da personalidade de uma criança; quando vemos a mãe de Tomo podemos pensar: onde está o pai para dividir as responsabilidades da educação da filha? Não sabemos onde ele está, se ele morreu, se abandonou a mãe e filha, ou se estão separados; isso não é comentado durante o longa. Talvez essa ausência de explicação do pai de Tomo foi uma intenção proposital da diretora de demonstrar como a responsabilidade da paternidade não é cobrada e discutida com a mesma intensidade que a maternidade.

Para a mãe recai o peso maior, a responsabilidade pela educação da filha. A ausência do pai não é questionada na obra, assim como comumente não é questionada na vida real. Dessa forma, a discussão do abandono afetivo deve ser questionando em conjunto com a paternidade e a maternidade compulsória. 

A diretora mencionou nessa entrevista que pretendia explorar as diversas manifestações de maternidade ao longo do filme. Segundo a diretora, a ideia da maternidade é explorada inicialmente através da comida. Enquanto a mãe de Tomo alimenta a filha com bolas de arroz comprados na loja de conveniência, Rinko prepara uma variedade de pratos apetitosos e decorativos para a menina. Uma coisa que eu realmente queria explorar era a relação entre mãe e filha e mãe e filho”, disse Ogigami. Embora a mãe de Tomo seja egoísta e apática, Rinko fornece o acolhimento e o carinho para a menina. Já a mãe do amigo de Tomo, Kai, é preconceituosa e temerosa, enquanto a mãe de Rinko, Fumiko, é compassiva e superprotetora, chegando a ameaçar a a garota.

Entre-laços

A homossexualidade na infância é outro assunto abordado durante o longa através do colega de Tomo, Kai (Kaito Komie). Durante uma entrevista, Naoko comentou sobre o conservadorismo do seu país e a dificuldade que a comunidade LGBT enfrenta na atualidade: “O Japão é um país muito conservador e ainda é difícil para as pessoas LGBTQ saírem do armário.” (tradução livre).

Kai encontra na amizade de Tomo uma forma de enfrentar o bullying dos colegas da escola e a educação rígida e conservadora de sua mãe. São duas crianças que carregam dores diferentes mas que se reconhecem entre as diferenças. Não demora muito para que a mãe de Kai descubra que Rinko é uma mulher trans, e através do desenrolar dessa revelação que o longa reserva uma das cenas mais difíceis de assistir.

As consequências que uma educação conservadora e rígida pode ocasionar na saúde mental de uma criança é debatida em conjunto com a homossexualidade no filme. Kai exerce um papel de como sua mãe quer que ele seja. A partir desse momento questionamos a necessidade da demanda exaustiva de diversas atividades de aprendizado na infância. Enquanto Tomo joga videogames, lê mangás e passeia de bicicleta, brincando com o que mais gosta, como qualquer criança normal; Kai parece mais exercer o papel de um adulto do que de uma criança.

A metáfora do tricô presente em Entre-laços

O tricô que Rinko gosta de fazer como hobbie e que ensina posteriormente para a Tomo possui diversos significados no longa. O ato de tricotar para Rinko é mais do que apenas um exercício, é um ato de luta, de resistência.

Acompanhamos no longa a infância e adolescência de Rinko como um menino, além de todo o acolhimento e a compreensão que recebeu no lar após a revelação da sua identidade de gênero. Não há uma abordagem violenta ou triste sobre tal revelação – abordagem que ocorre com certa frequência no audiovisual. Contudo Rinko precisa lidar com o preconceito na esfera social e descobre no ato de tricotar a força para resistir em um mundo que ainda não foi capaz que aceitar nossas diferenças.

A diretora comentou que há vários motivos por ter utilizado o tricô no longa. Um dos motivos foi pela descoberta na livraria de um livro sobre um casal gay, ambos especialistas em tricô. “Nesse livro havia muitas fotos deles tricotando juntos. As fotos pareciam tão charmosas e adoráveis, então pensei que se eu usasse esse elemento no meu filme, ficaria fofo.” 

Outro significado foi que a diretora, após estudar cinema nos EUA, retornou ao Japão com 28 anos, sem dinheiro ou trabalho, e descobriu que o tricô era um exercício que lhe deixava calma. Quando questionada sobre o que foi tricotado durante o longa, a diretora comentou que seria chato se as personagens apenas tricotassem blusas ou lenços. Então, após várias semanas pensando, surgiu a ideia de tricotar um tecido em forma de pênis, que chamou de “Mr. Trouble”. 

Entre-laços

Em um mundo que atualmente ainda enxerga tanto a sexualidade como a identidade de gênero como temas tabu, um dos significados da escolha de Rinko ao tricotar pênis pode ser compreendido como um exercício e a forma de lidar com a violência cotidiana e o preconceito na esfera social. Todas as suas dores foram tricotadas e transformadas no formato da genitália com que não se identificava. O medo da violência que teve que enfrentar ao assumir publicamente sua identidade de gênero foi simbolicamente representado através de uma das cenas mais belas e catárticas do longa.  

O preconceito que a comunidade LGBT enfrenta é um tema, infelizmente, universal. Precisamos cada vez mais de filmes como Entre-laços, filmes que tem a coragem de quebrar as barreiras e tabus ao abordar assuntos necessários que precisariam ser debatidos desde a infância, nos lares e nas escolas. No país aonde a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida por ser vítima da “LGBTfobia” e o que está em 1ª lugar no ranking de países que mais assassinam transexuais, Entre-laços chega aos cinemas brasileiros no momento essencial. 

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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