A Amante: mães dominadoras e a perpetuação do patriarcado

A Amante: mães dominadoras e a perpetuação do patriarcado

O filme A Amante (no original: Inhebek Hedi), com direção e roteiro de Mohamed Ben Attia, concorreu em 2017 ao prêmio Muhr – prêmio lançado em 2006 para curtas e longas-metragens originários dos Emirados Árabes Unidos e do mundo árabe – durante a 14ª edição do Dubai Internacional Film Festival. Foi indicado aos prêmio de Melhor Atriz (Rym Bem Messaoud), Melhor Ator (Majd Mastoura), Melhor Direção, filme de ficção e júri para o diretor Mohamed Bem Attia.

A Amante, drama lançado em 2016, chega ao Brasil nesta quinta-feira (31) nos cinemas e é uma ótima pedida para o feriado. Hedi, nome original do filme – que inclusive tem mais sentido, pois refere-se ao protagonista do longa cuja história será contada – nos leva até a Tunísia (recém-democrática), país da África do Norte pertencente a região do Magrebe. De religião predominantemente muçulmana, com alguns poucos cristãos, lá ainda é comum que as famílias sigam os ditames e os hábitos dessa religião tão bela mas cheia de condutas, que para nós, ocidentais católicos, pode parecer estranha, conservadora e até machista.

As discussões inseridas no filme A Amante

O filme faz um recorte na vida de Hedi (Majd Mastoura), um jovem rapaz de 25 anos cuja vida é dominada pela mãe, além do seu desejo por casar o filho mais jovem com a doce Kedija (Omnia Ben Ghali), moça de origem muçulmana, num casamento típico. 

Hedi trabalha sem entusiasmo numa concessionária de carros fora da cidade, onde vivem sua mãe e sua noiva. Parece apático a tudo que diz respeito ao casamento e a sua vida, mas não manifesta nenhum tipo de contrariedade aos planos de sua mãe e seu irmão mais velho. Seu irmão é um capítulo a parte, vive na França, casado com uma mulher não muçulmana (a que tudo indica) que não tolera sua mãe (e vice-versa) e com quem tem uma filha.

Hedi (Majd Mastoura)

Leia também:

>> [CINEMA] Entre Irmãs: A união de duas mulheres que desafiam o patriarcado no sertão nordestino

>> [CINEMA] Como Nossos Pais: As relações entre as mulheres e o fim da reprodução do patriarcado

>> [CINEMA] 12 filmes de diretoras sobre adolescência e os olhares críticos sobre o patriarcado

Inicialmente implícito no filme, o desejo de casar seu filho mais novo e mantê-lo vivendo embaixo do mesmo teto que ela, está relacionado ao fato dela não ter conseguido influenciar a escolha da mulher de seu primogênito, “perdendo-o” para o casamento e para outro país. Por conta disso, o irmão de Hedi apoia sua mãe nos trâmites do casamento, indo até a Tunísia para os ritos de noivado e da cerimônia de enlace do casal. Porém, Hedi é transferido pela empresa que trabalha para uma região ainda mais distante de sua cidade natal, sendo obrigado a se instalar em um hotel. E dessa forma pouco a pouco faz-se claro a natureza do rapaz.

De família estável financeiramente, Hedi é tratado pela mãe como se fosse uma criança, e apesar de ter dinheiro (referente ao dote que recebeu do pai da noiva – hábito comum em algumas religiões) e trabalhar, ainda recebe mesada de sua mãe, que o cerca de cuidados e toma decisões sobre a vida do rapaz, sem consultá-lo.

O rapaz não demonstra nenhum entusiasmo pelo seu trabalho e não parece ter planos para um futuro profissional ou qualquer outra coisa, passa seus dias na praia, visitando um ou outro cliente, como se o trabalho e o casamento não fossem assuntos de seu interesse, bastando o mínimo esforço necessário de sua parte para se fazer presente para o patrão e para sua noiva, sem grandes investimentos nessas relações. Quando se instala no hotel, por conta do trabalho, nas vésperas de seu casamento, Hedi conhece a radiante Rim (Rym Ben Messaoud), uma jovem de espírito livre, dançarina e monitora no Resort onde ele se instala. Hedi fica interessado pela moça e logo os dois iniciam um romance que colocará em xeque o seu futuro e os planos de sua mãe.

A Amante
Hedi (Majd Mastoura) e Rym (Rym Ben Messaoud)

Leia também:

>> [CINEMA] Vingança: misoginia e as mulheres que são caçadas diariamente pelos homens

>> [CINEMA] Tully: Paternidade negligente, mães sobrecarregadas e “Afinal, era só pedir”

>> [CINEMA] As Boas Intenções: relações abusivas familiares e a reprodução nociva do patriarcado

O filme é interessante justamente porque explora a relação de Hedi com sua mãe e a força do matriarcado (mesmo que por um viés submetido ao aspecto doutrinário da religião), lançando um olhar às relações de muitas mães e seus filhos, principalmente os filhos homens. A mãe de Hedi acredita que não faz mais do que proteger seu filho mais novo e garantir a ele um futuro seguro ao lado de uma moça rica, devota e “adequada”, ao que se espera de uma “boa” esposa.

Pode parecer que estamos nos referindo apenas a mãe de Hedi, por conta de sua formação religiosa, mas não é isso. As características que levam a mãe do rapaz a se comportar de forma tão protetora e dominadora têm menos a ver com a religião e muito mais com as relações simbióticas que muitas mulheres estabelecem com seus filhos homens. É a ideia de que somente ela (a mãe) é capaz de saber o que quer, o que é bom e o que agrada seu filho, tirando da formação desses homens a capacidade de alcançarem a plena autonomia, o que inclui a capacidade de fazerem suas próprias escolhas e seguirem caminhos que diferem daqueles apontados por suas mães.

Em A Amante fica difícil perceber, por um tempo, a afirmação mencionada anteriormente, mas quando Hedi se vê diante da possibilidade de escolher algo para sua vida, que o lance rumo ao desconhecido guiado por suas próprias mãos, ele acaba recuando. É visível o viés do machismo enraizado nessas relações de mãe e filho e mais ainda, vemos claramente a propagação de comportamentos ligados ao patriarcado sendo transmitidos por mulheres a seus filhos. Já falamos aqui, em outro texto, sobre a dura missão das mulheres dessa geração de passarem aos seus filhos e filhas noções sobre igualdade de gênero, e dessa forma enfraquecerem a cultura de paternalismo que herdamos de nossos ancestrais.

A Amante ou Hedi deixa à mostra o protagonismo feminino e responsabiliza em certa medida as mulheres por perpetuarem o machismo, mantendo seus filhos homens dentro de uma bolha protegida, sem impulsionarem esses homens a desafios que certamente os tornariam capazes de serem livres e seguirem seus próprios projetos.

Talvez, pela falta de força moral e pouco entusiasmo desses jovens, frutos de uma criação baseada no paternalismo, existam homens que enraivecidos pela imagem dominadora de suas mães, muitas vezes cometem atrocidades contra outras mulheres. Fica o convite para que nós, mães dessa geração, possamos refletir à respeito de como educamos nossos filhos e para onde os impulsionamos.

A Amante estreia amanhã (31) nos cinemas.

Escrito por:

43 Textos

Mulher, mãe, profissional e devoradora de filmes. Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, trabalhando com Gestão de Patrocínios e Parceiras. Geniosa por natureza e determinada por opção.
Veja todos os textos
Follow Me :