“Queen Sugar” e a necessária representação negra na TV

“Queen Sugar” e a necessária representação negra na TV

A série Queen Sugar estreou em 2016, no canal OWN (Oprah Winfrey Network). Dirigida e produzida por ninguém menos que Ava Duvernay (Uma Dobra no Tempo), a série é baseada no romance homônimo de Natalie Baszile. Na trama, três irmãos com pouco em comum e que quase não têm contato acabam tendo que cuidar da fazenda de cana-de-açúcar de seu pai, que acaba de falecer, deixando tudo para eles administrarem.

Queen Sugar representa uma virada na produção de séries americanas por apresentar um elenco principal completamente negro. Além de abordar temas caros à comunidade negra, a série não tem medo de parecer panfletária, mas não soa como tal. Os três irmãos têm características bem distintas dentro da família e passam longe dos estereótipos de famílias negras que estamos acostumadas a ver em séries americanas. Essas séries são geralmente de comédia, e apesar de falarem de racismo, como em “Todo Mundo Odeia o Chris”, passam longe da pluralidade de personalidades que tanto desejamos ver representados em produtos da cultura atual.

Queen Sugar

Os personagens

Os três irmãos, Nova Borderlon (Rutina Wesley), Charley Borderlon-West (Dawn-Lyen Gardner) e Ralph Angel Borderlon (Kofi Siriboe), têm que aprender a lidar com a nova dinâmica da família ao mesmo tempo em que tentam se virar com os seus problemas pessoais.

Nova é uma jornalista e ativista que tem um caso com o um homem casado. Ao mesmo tempo em que milita pelo movimento Black Lives Matter, vende maconha para os mesmos jovens que tenta salvar da cadeia, mostrando a dualidade e até mesmo a hipocrisia da personagem – que também atua como o elo de ancestralidade dentro da família.

Já a sua irmã, Charley, é completamente diferente. Vivendo como empresária de seu marido atleta, com uma vida dos sonhos na Califórnia, tudo muda quando o seu marido se envolve em um escândalo sexual que põe em cheque tudo o que ela havia conquistado e a obriga a se isolar na fazenda de seu falecido pai, tendo que lidar com uma nova vida. 

Ralph Angel é um ex-presidiário que pretende reaver a guarda do filho, que atualmente está com a sua Tia Violet, após a mãe do garoto perder a guarda por uso de drogas.

Queen Sugar

Subversão dos estereótipos

O interessante de Queen Sugar é ver como os estereótipos a que estamos acostumadas, quando se trata da representação negra na TV, são subvertidos ao longo da série. Ralph Angel tinha tudo para ser o retrato do homem negro ex-presidiário e violento, mas ele é carinhoso com o filho e faz de tudo pelo menino, sempre colocando as necessidades do garoto em primeiro lugar. A mesma relação carinhosa e atenciosa ocorre com a mãe do garoto, apesar do peso que o uso de drogas trouxe para a família.

Nova também tinha tudo para ser o retrato da ativista caricata, mas ela é cheia de camadas e nuances e nem sempre está com a razão, sendo até difícil para ela reconhecer isso. A personagem também é o retrato de uma mulher negra queer contemporânea, se relacionando com quem a atrai mais – tanto homens quanto mulheres – sem ter nenhum problema com isso e nem ser uma questão para a personagem, ela é o que é.

Já Charley, também cairia no estereótipo da mulher negra que aguenta tudo e move montanhas pela sua família, no melhor estilo Olivia Pope, da série “Scandal”. Mas ela também é humana, comete erros e sofre com isso, tendo que lidar com as suas escolhas.

Apesar do foco da série ser os três irmãos, vale mencionar dois personagens não tão valorizados, mas que são o norte de toda história: Tia Violet e Hollywood. Violet Borderlon (Tina Lifford) é a irmã mais nova do pai dos irmãos, Ernest Bordelon (Glynn Turman), e está em um relacionamento duradouro com um homem mais jovem, Hollywood (Omar J. Dorsey).

Queen Sugar

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Abordagem de temas necessários

Tia Vi, como é chamada pela família, serve como conselheira e cuida do filho de Ralph Angel. Além disso, ela serve de apoio para a família e observa todos problemas que os seus sobrinhos se metem. A personagem poderia muito bem ser a retrato da “Mammy“, o típico estereótipo da mulher negra mais velha que vive em função da família, cozinhando e cuidando das crianças, sem manifestar sua opinião e sexualidade. Mas esse não é o caso. Violet tem uma vida boa com Hollywood, e deixa bem claro que apesar de ser uma mulher mais velha, quase na casa dos 60, ainda tem a sua sexualidade e os seus desejos intactos. O seu parceiro, Hollywood, também é o exemplo de um homem apaixonado, carinhoso e cuidador, que sempre está lá para quem precisa dele. É raro vermos isso quando se fala da representação negra na TV.

Para além dos personagens, Queen Sugar também trata de temas importantes, como a violência policial, encarceramento em massa, estupro, solidão da mulher negra, adultério, abuso de drogas, sexualidade, feminismo, as relações do momento atual dos imigrantes nos EUA e o paralelo que pode ser feito com a escravidão. É quase uma aula sobre as questões atuais representadas no drama dessa família de Nova Orleans, que aborda até o desastre causado pelo furacão Katrina, em 2008, e como isso afetou a população negra.

Queen Sugar

Queen Sugar é uma série necessária e representa bem a evolução do mercado das séries americanas que agora enxerga a audiência negra como consumidora e passa a entregar produções mais densas a relevantes para esse público. Importante destacarmos que a série foi feita e exibida pelo canal da apresentadora Oprah, que além disso foi responsável pela direção. Toda a iniciativa de produção foi realizada por uma equipe negra, e vemos que apenas essa comunidade poderia retratar temas tão caros, da forma como é feito em Queen Sugar.

A série deveria ser assistida por todos e não só por uma audiência negra, para que tais temas e discussões atravessem o tal nicho, capaz de limitar as produções negras de alcançarem o seu potencial. Um bom exemplo disso é o fato de que até o momento nenhum canal ou streaming manifestou interesse em exibir a série no Brasil, mesmo com toda a qualidade técnica e os elogios da crítica. 

Tal desinteresse mostra bem o atraso que temos em relação à representação de histórias negras. Enquanto aqui no Brasil ainda estamos discutindo o protagonismo de atores brancos em uma novela que se passa em um estado predominante negro ou a falta de atores negros em outras produções de ficção, lá fora existem séries como Queen Sugar, onde podemos ver representações densas e sinceras de famílias negras em sua totalidade, sem ser apenas um núcleo ou um personagem avulso.

Conseguimos nos enxergar nessa história. É disso que se trata a tal representatividade.

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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