GLOW – 2ª temporada: Mulheres em novas faces de uma luta por liberdade

GLOW – 2ª temporada: Mulheres em novas faces de uma luta por liberdade

No dia 29 de junho, foi liberada a segunda temporada de GLOW, série produzida pela Netflix. GLOW é uma daquelas séries sobre a qual muitos já ouviram falar, mas nem tanto assistiram. E o que aqueles que não assistiram não sabem, é que a aparência despretensiosa de uma comédia ambientada nos anos 80, esconde importantes discussões. Baseada em uma série real sobre a liga de luta livre feminina dos Estados Unidos, exibida de 1986 a 1990, GLOW narra a trajetória de diferentes mulheres em suas particularidades e tentativas de sucesso com um programa de luta livre.

A segunda temporada talvez tenha explorado ainda mais questões sobre suas personagens e as escolhas de vida. A comédia permanece como contexto da série. No entanto, novas perspectivas sobre as escolhas na vida despontam. Nem toda escolha será baseada apenas no arbítrio dos indivíduos. Pelo contrário, muitas delas serão condicionadas por um panorama maior. E em uma sociedade em que a liberdade e a igualdade são conferidas a poucos, esse grupo de mulheres se encontra. Elas aprendem a aceitar suas diferenças para alcançar o sucesso. E, acima de tudo, aprendem que, mesmo diferentes, todas podem se apoiar.

GLOW

O valor de uma mulher

O primeiro episódio revela que, pelos olhos de uma sociedade patriarcal, toda mulher é substituível. Esse pensamento deriva da objetificação feminina. Enquanto objetos, mulheres podem ser descartadas. Podem ser trocadas tão logo que outra melhor apareça nas prateleiras. Ou ao menor sinal de defeito. E como as mulheres apresentam defeitos nessa sociedade que exige delas a perfeição. Mulheres precisam ser sensuais ou, caso não o sejam, performar fetiches masculinos. Mulheres precisam aceitar imposições masculinas. E, antes de tudo, entender que precisam aceitar caladas por tudo isso. Afinal, todas são substituíveis – ao menos para a sociedade.

Mulheres não precisam assinar o contrato que lhes é apresentado. Mas devem saber que, caso recusem, não haverá outra alternativa. A discussão acerca dos termos é reservada a pouquíssimas. Como a Debbie (Betty Gilpin), por exemplo, o estereótipo de mulher ideal ocidental. Branca, loira, olhos azuis, magra, sexy. Mas mesmo ela possui limitações de poder. Ela pode impor cláusulas ao ser um contrato para com a sociedade. No entanto, esta não é uma garantia de que elas serão cumpridas da forma como ela desejava.

GLOW

Mulheres empoderadas apenas em certa medida

O diretor Sam (Marc Maron) foi quem idealizou o grande projeto de GLOW (Gorgeous Ladies of Wrestling). Um diretor de relativo sucesso no passado, mas que há muito não se destacava, reúne diversas mulheres em trajes brilhantes para simulações de luta livre. Mas teria ele o mérito do programa? Seu nome é, realmente, o que faz o show? Sam parece achar que sim, seguindo a lógica de que homens fazem o diferencial por si e de que mulheres apenas pertencem a um grupo maior. Mulheres não possuem identidades ou individualidade. Mulheres são mulheres, subordinadas aos seus caprichos e, por isso, podem ser trocadas.

Quando Sam pede ao grupo para que produza um episódio piloto, Ruth (Alison Brie) assume a liderança. Ruth, que cresceu bastante desde a primeira temporada, mostra que não apenas é esforçada, como possui talento para o show. E, na verdade, sem Ruth, muito provavelmente GLOW não faria sucesso. O destaque feminino, porém, amedronta. Ameaça homens como Sam, apesar de todo o carisma do personagem.

Sam, assim como Debbie e Bash (Chris Lowell), tem esse conhecimento. Os melhores episódios são idealizados por Ruth. Não obstante, ela é responsável pela condução do grupo. E eles não recusam sua ajuda. Mas quando o poder de Ruth ofusca o diretor, é preciso impor limites. O poder feminino somente pode ser incentivado enquanto contribui para o poder masculino sem ameaçá-lo. Então, Ruth é punida. Como um brinquedo, não pode se desligar do show por vontade própria, mas pode ser dispensada. E pode ser punida por ameaçar o ego de um homem.

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A falta de reconhecimento das mulheres

Debbie é a única das integrantes de GLOW que consegue fazer um contrato diferente. E isto em razão do seu sucesso anterior. Mas também do conhecimento de seu valor e de seus direitos. Todas as mulheres são valiosas, todas possuem direitos. E o reconhecimento de suas próprias capacidades é uma ferramenta de libertação. Debbie utiliza isso a seu favor e torna-se uma das produtoras do show. Todavia, como dito anteriormente, nem sempre os termos do contrato são seguidos como se espera.

Em sua nova posição, Debbie pode opinar quanto ao seguimento do programa. Pode sugerir e pode vetar. No entanto, ter uma voz não significa que ela será ouvida. Isto em GLOW e na sociedade de modo geral. Diferentemente de suas companheiras, Debbie pode se manifestar, mas isso não obriga Sam ou Bash a aceitarem suas sugestões. Pelo contrário, suas ideias são menosprezadas. Somente são reconhecidas como boas quando validadas por um de seus colegas de produção.

Enquanto isso, Sam e Bash se unem em toda e qualquer ideia, confirmando a ideia de uma irmandade masculina. Debbie, assim, não apenas é objeto de piadas machistas, por ser mãe e profissional. Tampouco é apenas a mulher sobrecarregada e subvalorizada, uma vez que trabalha mais (como atriz, produtora e roteirista), sem ganhar mais. Ela também se torna só. Ela perde o companheirismo de suas colegas. Ao ocupar uma posição de superioridade, Debbie se afasta delas. Não mais pertence ao grupo de atrizes mulheres, mas nunca pertencerá ao grupo de produtores masculinos.

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The American Way of Life

Através do excêntrico grupo de GLOW, a série continua a fazer, simultaneamente, comédia e críticas, sobretudo ao contexto norte-americano dos anos 80. Ruth, Debbie, Cherry (Sydelle Noel), Justine (Britt Baron), Carmen (Britney Young), Rhonda (Kate Nash), Sheila (Gayle Rankin), Tammé (Kia Stevens), Melanie (Jockie Tohn), Stacey e Dawn (Kimmy Gatewood e Rebekka Johnson), Arthie (Sunita Mani), Jenny (Ellen Wong), Reggie (Marianna Palka) e a novata Yolanda (Shakira Barrera) interpretam estereótipos relacionados à cultura do American Way of Life.

Se às vezes GLOW ironiza estereótipos, às vezes também parece engrandecer valores americanos. Tal valorização apenas não é negativa, na medida em que reflete uma cultura específica e própria do período. Cabe ressaltar que durante a década de 80, o mundo vivenciava o que se conhece como Guerra Fria, e a indústria era utilizada para convencer a população do papel salvador de um país capitalista como os Estados Unidos. É preciso, no entanto, se esforçar para compreender as referências críticas a essa idealização nacional.

Por trás dos estereótipos, GLOW insere também críticas de pertinência social. Na primeira temporada, temas como aceitação pessoal, aborto e divórcio foram explorados. Na segunda temporada, outros temas tiveram a oportunidade de serem levantados pelas criadoras e roteiristas Liz Flahive e Carly Mensch. Entre eles, outras perspectivas da maternidade, um tema recorrente quando se fala de mulheres em geral. Mas também sobre homossexualidade e racismo.

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Mulheres e mães

Na primeira temporada, o foco do tema maternidade deu-se majoritariamente com Debbie. E ele retorna enquanto ela precisa conciliar sua carreira com os cuidados do filho, além do acordo de guarda com o ex-marido. Contudo, novas e diferentes perspectivas também são fornecidas na segunda temporada.

Por um lado, destacou-se a história de Tammé. Tammé, uma mulher negra, cujo filho conseguiu uma vaga na universidade, motivo de seu orgulho. No entanto, ela teme sobre o que seu filho acharia de ver sua mãe não somente lutando com outras mulheres, mas lutando em uma irônica caracterização da Previdência. Porque ele, assim como ela, sabe que a meritocracia e o ideal de esforço – próprio do capitalismo – não é uma realidade para todos. Pessoas batalham todos os dias para não ganhar uma pequena parcela do que pequenos grupos recebem. E inicialmente, ele não entende a posição de sua mãe, mas percebe que, apesar de tudo, ela é uma mulher batalhando. Nem sempre as escolhas são as que idealizamos.

Por outro lado, trabalhou-se melhor a questão de Justine. Ao final da primeira temporada, descobriu-se que Justine era filha de Sam. E aprofundou-se a relação entre eles. Mostrou-se a diferença entre um homem que tenta se conectar com a filha que não sabia que existia; e entre uma mulher que criou a filha sozinha, porque aquele homem desapareceu de sua vida. Ainda que Sam não soubesse de sua filha, ele nunca se importou em saber. Havia maiores preocupações em sua vida. E isto reforça a normalidade com que o abandono parental masculino é encarado pela mesma sociedade que alerta mulheres sobre os riscos de uma gravidez. A maternidade compulsória é, ao mesmo tempo, uma imposição e uma ameaça à liberdade de uma mulher. Nunca é tratada como uma possibilidade de escolha, diferentemente da paternidade.

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Racismo e homossexualidade

As críticas a uma cultura racista não são tão fortes quanto às críticas a uma cultura machista, de fato. Mas GLOW se esforça em ao menos inserir a temática racial. Apesar de trazer como protagonistas exclusivamente personagens brancas, destina alguns capítulos a falar, ainda que sutilmente, sobre racismo. Indiretamente, com Tammé e seu filho. E mais diretamente com Cherry. Ao final da primeira temporada, Cherry foi contratada como protagonista para uma série policial. No entanto, ao encarar o novo emprego, depara-se com uma realidade diferente da esperada. Ela, acostumada a ser dublê, é aconselhada a adotar um visual mais “branco” para conquistar o público, o que lhe causa compreensível indignação. Ninguém deveria ter que mudar o que é para ser aceito em um ambiente.

Quando à homossexualidade, GLOW apresenta tanto a homossexualidade feminina, através da nova personagem Yolanda, quanto a masculina, através da exploração da sexualidade de Bash. No que concerne à homossexualidade feminina é interessante observar a quebra de alguns estereótipos. Yolanda é caracterizada como uma mulher sexy, longe do clichê masculinizado da mulher homossexual. Isto, claro, poderia caminha na direção oposta, rumo à fetichização da mulher lésbica. Mas isto não ocorre em GLOW. Pelo contrário, Yolanda se envolve com uma personagem inesperada.

Já no que concerne à homossexualidade masculina, GLOW apenas introduz o tema. Bash descobre que seu amigo de infância frequentava bares gays e fica incomodado. Concomitantemente, porém, parece questionar seus próprios sentimentos. Como a narrativa é melhor explorada ao final da temporada, possivelmente será aprofundada em uma próxima temporada.

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Sexualização do corpo feminino

Desde a estreia de GLOW, um grande ponto restou intocado. Sim, a série desde o princípio pretende abordar as dificuldades de diferentes mulheres. No entanto, estas mulheres encontram como forma de superação a exploração de seus corpos através da luta-livre. Não se pode ignorar que a luta livre feminina é encarada como sexualizada e serve, sobretudo, à satisfação de fetiches masculinos. É uma questão de como a luta livre feminina – assim como o corpo feminino – é encarado culturalmente. E, então, GLOW supre esse questionamento em sua segunda temporada.

De um lado, apresenta as críticas dos grupos conservadores, que negam qualquer sexualidade feminina. Afinal, mulheres devem seguir os “bons modos”. De outro, aborda-se que os principais espectadores do show são homens que encaram as integrantes do grupo de forma fetichizada. Enviam cartas e fotos sexualizadas, desrespeitando o exercício profissional daquelas mulheres. Pois apesar da forma como são encaradas pela sociedade, as integrantes de GLOW são, antes de tudo, profissionais.

No entanto, a vida profissional de uma mulher nunca parece ser encarada dissociada de seu gênero. E, desse modo, é vista como passível de ser ignorada, sobretudo se servir aos prazeres masculinos. Mulheres são vistas como disponíveis a todo e qualquer assédio, por seus fãs e por seus superiores.

Diante da onda de denúncias quanto ao assédio na indústria cinematográfica, GLOW levanta o tema através de Ruth. Ruth, que desde o início luta por seu progresso na carreira sem deixar de se preocupar com os outros. Ruth, que enfrentou diversas decepções, profissionais e amorosas, perdeu a melhor amiga, passou por um aborto, e ainda assim continuou firme em suas metas, vai a um encontro de trabalho. E é assediada. E como represália à sua recusa, impõe-se barreiras ao show de que participa.

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Feminismo para quem?

Era de se esperar que Ruth encontrasse apoio em outras mulheres, mulheres que sabem o que é sofrer cotidianamente pelo direito de querer crescer. Mas Ruth é julgada. Não por todas as suas colegas, apenas por Debbie, que continua a punir Ruth pela traição de seu marido. Quando Ruth a questiona sobre se pretenso feminismo, Debbie repete o clichê “é assim que as coisas são”. “Feminismo tem fundamentos, a vida, acordos”. O feminismo de Debbie segue a lógica liberal de ignorar as nuances de um machismo enraizado, como se somente o poder aquisitivo fosse suficiente ao rompimento das desigualdades e violência contra a mulher.

Esse choque é importante para que GLOW cresça, sobretudo se for renovada para outras temporadas – e espera-se que seja. Não se pode ignorar que a palavra feminismo muitas vezes será utilizada, como tantas outras, para homogeneizar o que é heterogêneo ou para justificar discursos injustificáveis. E isto não significa que o feminismo não deve ser defendido, pelo contrário, feminismo é sobre lutar contra toda essa realidade de opressão à mulher. Não é apenas uma palavra a ser levantada em momentos aleatórios e quando do interesse daquelas que, apesar de oprimidas, encontram-se em posições mais favoráveis. Feminismo é para todas em todas as suas particularidades. É um rompimento com uma tradição em busca de uma verdadeira libertação.

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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