[LIVROS] A Glória e Seu Cortejo de Horrores: Um manifesto de Fernanda Torres em prol a arte no Brasil

[LIVROS] A Glória e Seu Cortejo de Horrores: Um manifesto de Fernanda Torres em prol a arte no Brasil

A cultura está sendo constantemente atacada. Desde a destruição de lugares históricos, como o Teatro Oficina, até a criminalização de obras de arte, a onda conservadora dos últimos anos tem tentado apagar o lado questionador e revolucionário da arte. A esse contexto soma-se ao momento delicado que o teatro brasileiro atravessa. Seus ícones estão morrendo, e ninguém parece se importar em preservar a memória deles.

A era do Teatro de Arena e do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) parece uma lenda. O barato é gourmetizar o teatro, com seus ingressos de 300 reais. É nesse contexto que o terceiro livro de Fernanda Torres, A glória e seu cortejo de horrores, chega como navalha rasgando a carne. O background privilegiado da autora, ou seja, os momentos na coxia do teatro, vendo seus pais, Fernanda Montenegro e Fernando Torres atuarem, é o que torna a história de seu protagonista, Mario Cardoso, tão verdadeira. Um background desses só poderia nos proporcionar uma reflexão sobre os rumos da cultura brasileira.

De que se trata o livro?

“A glória e seu cortejo de horrores” é uma frase que Fernanda Montenegro costumava dizer com frequência para ilustrar a dificuldade do ofício de ator. Depois dos aplausos, de ser ovacionado por uma plateia fiel, há sempre o medo de não repetir aquela atuação, aquele feito.

Segundo Fernanda Torres, em entrevista para a revista Trip, a profissão de ator pode ser facilmente comparada ao Mito de Sísifo. Você se esforça, faz com que a pedra role até lá embaixo e tudo volta à estaca zero. É como se você não aprendesse nada. É sempre a primeira vez. 

O sentimento de querer se superar é o que move a trama de A glória e seu cortejo de horrores. No livro, somos apresentadas a Mário Cardoso, um ator que já teve dias melhores. Quando a história começa, ele está tentando voltar a ser um respeitado ator de teatro através de uma adaptação megalomaníaca de Rei Lear, de Shakespeare.

A história sobre o acaso de um artista não é exatamente algo novo nas artes. Por exemplo, Crepúsculo dos Deuses, filme de Billy Wilder, retratava a decadência da estrela do cinema mudo, Norma Desmond. A produção é de 1951, mas já se podia ver como a fama impactava a vida daqueles que viviam dela. Se Crepúsculo dos Deuses fez um retrato fiel da Hollywood dos anos 50, A glória e seu cortejo de horrores consegue nos inserir no desconhecido mundo do teatro e da televisão brasileira, quando não existiam mídias sociais para ditar as regras do jogo.

Fernanda Torres

O Mário Cardoso que existe em todos os atores

Apesar de não ser atriz, eu tenho uma relação muito especial com o teatro. Minha atriz brasileira favorita, Nathalia Timberg, começou no mesmo meio que Mário Cardoso. Ao contrário dele, ela acompanhou toda a evolução da profissão, quando a televisão chegou e levou o teatro para detrás das câmeras, na época que foi considerada uma das mais prolíficas da televisão: o Grande Teatro Tupi. Para entrar no universo de Nathalia, eu acabei devorando muitos livros sobre o assunto. Além disso, tenho uma parca convivência com ela, e uma vez chegamos a almoçar juntas. 

O que me deixou com a sensação de ter levado um soco no estômago enquanto lia A glória e seu cortejo de horrores é a semelhança que Mário guarda com Nathalia – e com todos os atores da geração dela. São pessoas que viram o amanhecer do teatro e da televisão e que agora sentem-se perdidos no meio de uma revolução tecnológica, que torna tudo muito efêmero. Ir ao teatro já não é mais a mesma experiência que antigamente. Como, então, estar preparado para os novos tempos, mantendo o velho espírito revolucionário das artes? Eis a questão.

A frustração experimentada por muitos atores brasileiros de vanguarda dos anos 60 e 70 assemelha-se também a de Mário Cardoso. Outrora reis e rainhas de novelas, o que lhes sobra é um papel secundário no novelão bíblico, do canal de reputação não tão boa assim. Eles amam o que fazem e precisam sobreviver, mesmo se isso significa submeter-se a tramas com qualidade de texto zero. Apesar de as novelas terem evoluído, acredito que a naturalidade do folhetim foi embora. Muito pelo contrário, parece tudo artificial demais. Onde está a realidade? Nesse sentido, Fernanda Torres critica a novela bíblica por abusar da tecnologia enquanto possui um texto canastrão. O que estamos veiculando na televisão? Nesse sentido, Fernanda Torres acerta muito ao descrever as sensações de Mário ao ser escalado para um papel em uma novela bíblica:

“Eu não aguentava mais descer a ladeira. Estanquei diante da mocinha, ela virou a cara e arfou, à espera do safanão. Interrompi a cena, aleguei não entender a razão do personagem. O diretor, já irritado com meu rendimento, me encarou estupefato. Razão do personagem?!, exclamou. Qual a motivação para tratá-la assim?, insisti. A motivação, ele respondeu, é cumprir o que está escrito, é honrar o contrato, é merecer o salário, é decorar o texto, é não vir com problema a uma hora de encerrar um dia com sete cenas penduradas; é dar graças a Deus por ter arrumado esse emprego sem precisar mendigar dinheiro naquele teatro de bosta que você faz; está bom de motivação para você?”

(Página 129)

Televisão e teatro: tudo vira mercadoria

Uma das discussões mais interessantes levantadas por Fernanda Torres é sobre as inúmeras formas de cultura, seja a telenovela ou o teatro.

Mário começa no teatro experimental, mas acaba migrando para as novelas e vivendo o ápice da carreira na televisão, nos anos 70. O personagem acredita ter se vendido para a cultura de massa, como bem ilustra este trecho:

“Que se dane o preconceito, a acusação de que a rede de comunicação colossal se concretizara para servir aos interesses do regime.”

Durante muito tempo, a novela foi considerada um produto de baixo teor intelectual, de fácil deglutição para a população. Quando Mário é contratado por uma grande emissora de televisão para ser o galã da nova novela do horário nobre, a televisão está vivendo seu momento de glória. Nos anos 70, a telinha quadrada explodiu, estimulada pelas políticas econômicas da ditadura civil-militar. Agora, diferentemente dos anos 50, ter uma televisão não era mais sinônimo de luxo. A telenovela teve de se transformar para acompanhar as mudanças na maneira como a televisão era encarada. Saem as tramas ambientadas fora do Brasil, como a Rainha Louca, de 1967, e entram as narrativas comprometidas em retratar a realidade social do país, como Escalada, de 1973.

Ao entrar para a televisão, Mário assiste à derrocada de seu grande sonho: fazer a revolução através do teatro. Ele acaba sendo mercantilizado pela arte, digamos assim, porque está mais comprometido em ganhar dinheiro do que com a qualidade do folhetim. Na juventude, o personagem fora para o sertão, a fim de conhecer as mazelas sociais e aplicá-las ao teatro. É a época do teatro experimental, da quebra da quarta parede. Porém, com o passar dos anos e a incerteza de viver de teatro e cinema, ele acaba migrando para a televisão.

Como quase tudo no capitalismo, a arte também foi vítima da mercantilização. Ao falar sobre a novela bíblica que Mário está estrelando, Fernanda Torres tece uma crítica bastante ácida aos folhetins caça-níquel, que não trazem nenhuma discussão à população. Ou ainda novelas, como Babilônia, que se propunham a discutir temas importantes, mas que foram duramente censuradas.

A crítica de Fernanda Torres não se dirige apenas à televisão. Também há muito espaço para questionar os rumos do teatro. Por que as pessoas não vão ao teatro? Já me peguei pensando nisso diversas vezes. Como espectadora, a resposta me parece um pouco óbvia: porque é caro. Ingressos que custam muitas vezes 180 reais não conseguem levar o público aos espetáculos. Mas sei que não é bem assim. Existem inúmeros espetáculos e festivais maravilhosos, como o Sesc Palco Giratório, mas ainda assim eles não conseguem ficar tanto tempo em cartaz e principalmente atingir o público mainstream. É como se um espetáculo, por não ter um ator famoso, não fosse digno de ser assistido. Segundo Fernanda Torres:

“O teatro está numa crise séria, porque as leis de incentivo criaram uma cultura em que a bilheteria não era importante, o que acirrou a dependência do Estado e terminou num levante de insultos, na crença de que mamamos nas tetas. Isso é grave, porque o teatro é o berço de muitas artes, foi ele que nos deu Vianinha, Nelson, Zé Celso, Antunes, Nanini,

Fernanda, Bibi, Dulcina, Regina Casé”.

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Um livro que chega em boa hora

Não poderia deixar de comentar sobre o fato de que o livro de Fernanda Torres chega em um momento crucial para as artes brasileiras: o ataque à cultura. De certa forma, a arte sempre sofreu tentativas de criminalização. O que mudou é que a onda conservadora pela qual passamos desde 2016, fez com que esse fato tomasse proporções absurdas. Assistimos estarrecidas protestos para censurar exposições sobre sexualidade no MASP, mesmo havendo uma faixa etária para a visitação. A mostra Queermuseu, em Porto Alegre, que se propunha a falar sobre orientação sexual também foi atacada. Ações como essas são perigosíssimas, porque visam podar o pensamento das pessoas. Por que não dar a oportunidade de elas visitarem a exposição e tirarem suas conclusões?

Desde então, outros ataques têm acontecido. No âmbito do teatro, a peça O evangelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu foi censurada em Jundiaí e Salvador por ter uma mulher trans como protagonista. Na visão do juiz, que decidiu pela censura, figuras religiosas não podem ser expostas ao ridículoNesse contexto, A glória e seu cortejo de horrores é um livro essencial a quem deseja refletir os rumos que a arte está tomando no Brasil. Através do passeio por uma memória televisiva e teatral, podemos perceber a riqueza de detalhes com que Fernanda Torres descreve o ambiente artístico dos anos 60 e 70. Percebemos o quanto somos ricos em cultura, mas muitas vezes não conseguimos enxergar isso.

O que mais me “pegou” durante a leitura foi o senso de urgência da memória. Explico: a urgência em preservar uma memória que está se esvaindo. Se não tivermos memória, como poderemos questionar o que está por aí? O Teatro de Arena questionava a ditadura militar, e é por isso que precisamos mais do que nunca falar dele. O TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) foi o berço da experiência moderna no teatro. E o que falar sobre Cacilda Becker e Bibi Ferreira? Onde estão essas mulheres? Por que não falamos sobre elas? Por admirar muito essa época, a sensação que tenho é de que, por mais que tentemos preservar essa memória, ela escorre pelos dedos feito água. O que fazer?

A leitura de trechos de A glória e seu cortejo de horrores no Teatro Oficina, alvo de uma disputa entre Sílvio Santos e o dramaturgo Zé Celso, foi muito simbólica nesse sentido. Os dois disputam o que fazer com o terreno vizinho ao teatro. Sílvio, por ser o dono, deseja construir torres residenciais; Zé Celso quer construir um parque com um teatro ao ar livre. São interesses completamente diferentes e que falam muito sobre a maneira de enxergar a arte no Brasil. De um lado, a bola de demolição do capitalismo põe abaixo qualquer tentativa de preservação da memória. De outro, a arte resiste, protesta e faz pensar. Infelizmente, a decisão de não construir as torres foi revertida pela Justiça e um dos espaços mais antigos do teatro está ameaçado. É o perigo que nos circunda. O que esperar de tudo isso, quando o próprio Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) apoia uma decisão dessas?

Devemos lutar pela arte no Brasil. É meio clichê, parece discurso de final de filme, mas os ataques estão por toda a parte. Vai além da censura. Demolir prédios, esvaziar a nossa memória. Não dá mais. A Glória e Seu Cortejo de Horrores é um grande manifesto em prol de todas essas artes; teatro, cinema e televisão; que nos definem enquanto pessoas e brasileiros.


A Glória e Seu Cortejo de Horrores

Fernanda Torres

Companhia das Letras

216 páginas

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Tradutora e noveleira. Criou, em 2014, o canal sobre cinema clássico no YouTube, o Cine Espresso, para espalhar na Internet o amor pelos filmes esquecidos. Gosta de chá preto acompanhado de um bom livro.
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