Final Space: as fêmeas foram extintas no futuro espacial?

Final Space: as fêmeas foram extintas no futuro espacial?

Em 1985, em um dos quadrinhos parte da coletânea Dykes to watch out for, Alison Bechdel manifestou uma indagação que seria no futuro chamada de Teste Bechdel. A indagação era simples: ela não conseguia achar filmes em que duas personagens mulheres, com nomes próprios na narrativa, conversassem entre si sobre algo que não fossem os homens. Em 2018, infelizmente, o teste ainda se mostra bastante útil para demonstrar como as mulheres são subrepresentadas nas narrativas televisivas e cinematográficas.

Em Final Space, série de animação recém-lançada da Netflix, entramos em um universo futurístico em que viagens planetárias, inteligência artificial e contato com seres de outras espécies se tornaram comuns. Acompanhamos o desastrado Gary, um jovem mentiroso que foi condenado à 5 anos de reclusão espacial, depois de destruir um prédio quando fingia ser um piloto.

Neste Universo, a Terra deixou de ser um planeta habitável. Os seres humanos sobrevivem em estações espaciais e em outras galáxias. Em seu encarceramento em uma nave, Gary passa os dias mandando mensagens para Quinn, uma cientista que ele conheceu no dia em que foi preso. E foi por tentar impressioná-la que Gary se fingiu de piloto e, consequentemente, explodiu o prédio.

Final Space
Quinn e Gary

Durante sua sentença, as únicas companhias à bordo da nave de Gary são a inteligência artificial HUE e o robô carente e desagradável KVN. Em um momento de seu “banho de sol” (ou banho de espaço) por fora da nave, Gary acaba esbarrando em um ser diferente, um balãozinho verde que vira seu amigo dando um abraço em seu rosto e a quem ele chama de Mooncake.

Assim que Mooncake embarca na nave de Gary, um contingente de soldados liderados por Lord Commander, o novo imperador maligno e  dono de tropas entre esses universos, é enviado para capturá-lo, o que faz Gary assumir responsabilidade por seu novo e imprevisível amigo, ajudando-o à fugir das forças que tentam raptá-lo.

Nessa empreitada de proteger Mooncake, ele vai desenvolvendo suas capacidades humanas: anteriormente um rapaz individualista e egocêntrico, Gary vai se tornando cada vez mais empático e leal aos novos amigos que faz no caminho.

E quando digo amigos, são amigos machos. Mesmo contando com personagens que não pertencem à raça humana, como o próprio Mooncake, KVN e HUE, praticamente todos os companheiros de Gary são homens. Nós ficamos sabendo por meio de flashbacks que Gary tinha uma relação de carinho forte com seu pai falecido, ex-piloto que morreu em uma missão espacial.

Mas em nenhum momento Final Space fala da existência de uma mãe. Nem citação à uma provável morte, desaparecimento ou até mesmo abandono. A única explicação para a existência de Gary parece ser via geração espontânea do pai. Mas isso também não é dito na série, então ficamos apenas com a impressão de que o garoto nasceu de chocadeira.

Apesar dessa ausência da figura feminina, boa parte da narrativa é dedicada à exposição da amizade entre homens, entre pais e filhos e entre amigos como redenção e forma de se obter coragem. O amor e o respeito homoafetivo entre os personagens masculinos parece ser o tema da série.

Final Space
Gary e o pai em flashbacks

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Essa narrativa se estende para outros personagens: Avocato, um felino espacial que acaba se juntando aos planos de fuga de Gary. Ele é um ex-sargento que era partidário de Lord Commander e que resolveu se revoltar contra seu superior depois que Lord ordenou que seus subordinados deveriam assassinar seus primogênitos para mostrar fidelidade ao líder. Avocato foi incapaz de matar seu filho Littlecato, que se tornou prisioneiro de Lord Commander e uma forma do vilão pressionar e chantagear Avocato.

Depois de se juntar à trupe de Gary, Avocato revela seu passado e recebe ajuda de Gary para libertar seu filho. De novo, temos a história de um pai leal que vai até os limites de suas forças para rever seu filho, junto com a figura de Gary, como o amigo fiel. Mas ainda assim, nenhuma menção à mãe: Avocato e Littlecato também são uma família sem fêmeas. E a explicação para a existência de filhos sem mães continua inexplorada.

Gary e Avocato

Tanto a história de Avocato, quanto outros personagens da trama, não perderiam em termos narrativos se fossem retratados como fêmeas. HUE poderia facilmente ser uma voz feminina sem perda de sentido, e o próprio Littlecato poderia ser a filha valente de Avocato. A inexistência de fêmeas nesse mundo é chocante e inexplicável.

Entretanto, em meio à essa quantidade absurda de machos no mundo espacial, Quinn é a heroína solitária. Inteligente, corajosa e habilidosa, capaz de viajar no tempo e lutar contra inimigos, Quinn percebe que a armada de que faz parte se corrompeu aos mandos de Lord Commander e vai atrás da turma de Gary para ser parte da resistência. Sem saber das mensagens que Gary gravou durante os últimos 5 anos, Quinn se depara com um rapaz completamente apaixonado e que insiste em tentar impressioná-la.

Apesar de toda sua complexidade, Quinn está sempre em relação à Gary — a sua importância na narrativa está basicamente no papel do par romântico. Constantemente assediada por outros integrantes da trupe, como KVN, Quinn habita esse mundo masculino isolada.

A única cena que em que a série de fato passa no teste Bechdel é quando as duas Quinns (uma do presente e outra do futuro) finalmente se encontram. Ou seja, até quando duas personagens mulheres se comunicam na história, na verdade elas são uma só. E boa parte do que a Quinn do passado e a do futuro conversam é sobre Gary.

Final Space deixa claro que a importância narrativa de se inserirem mulheres na história é criar um arco romântico e pouca coisa além.

As duas Quinns

É uma pena que quando realizadores idealizam um mundo novo, raramente incluam uma visão de igualdade, em que homens e mulheres superaram as hierarquias de gênero e vivem em condições similares. Mas no caso de Final Space, metade da humanidade que conhecemos é resumida à uma figura sozinha e com um papel bem delimitado e restritivo dentro da narrativa.

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Feminista Raíz
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